Estamos em 1960 (ou talvez 1962), no Verão tórrido de um Alentejo desprezado pelo poder salazarista. Abril estava ainda fora daquele horizonte, aberto e amplo mas a vários títulos asfixiante. Uma calma que apenas estremecia à passagem esporádica de um ou outro automóvel com os pneus a guinchar na curva apertada após uma longa reta. Os sons das cigarras rompiam o silêncio e a monotonia daquele território árido, onde o amarelado da paisagem, o restolho seco, era apenas rasgado pelo tapete negro de alcatrão cintilante quase a derreter-se ao Sol abrasador. Mas na berma da estrada começava a vislumbrar-se, ao longe, uma poeria anormal em redor de duas silhuetas que se erguiam lado a lado com alguma coisa por trás. No início poderiam confundir-se com miragens em pleno “deserto” alentejano. Mas não. Eram bem reais. No seu movimento compassado percebi pouco depois que eram cavalos, trazendo atrás de si um homem acorrentado. Cavalos montados por aquela guarda, de farda cinzenta e botas altas, que aterrorizava crianças e ainda mais os adultos, pelo menos os mais conscientes das razões da sua miséria e do sufoco da sua liberdade. Do alto dos seus cavalos brancos estas figuras altivas eram a personificação do poder, em absoluto contraste com o ser miserável, com as mãos acorrentadas, curvado e maltrapilho, a desfalecer de sede. Deram-lhe água, mas só depois de saciar os cavalos no fontanário à beira da estrada.
Estes mesmos guardas, ou outros seus comparsas, eram aqueles que regularmente frequentavam o café-restaurante da família, com regularidade. Vinham por vezes em grupos de quatro, recordo-os, grandes e gordos, com ar carrancudo. Creio agora que percebiam a raiva silenciosa que causavam à sua passagem. Sentavam-se num espaço interior, mais resguardado da casa, e a mesa, devidamente preparada, com toalhas de tecido branco, em breve ficava recheada de iguarias, com vinho, presunto, queijo e às vezes outros petiscos. Ficavam horas a comer, mas falavam pouco; e depois de empanturrados saiam como se fosse da casa deles. Já se sabia que não pagavam a despesa, mas pelo menos era de esperar que tivessem um gesto, ainda que fingido, de pedir a conta. Assim pensavam as vítimas daquele saque (os meus pais). Porém, na maioria das vezes nem isso acontecia. Entravam e saíam atravessando o espaço público da taberna, espalhando um temor respeitoso entre os clientes domingueiros da “Casa de Pasto – o 15” (era esse o nome), um espaço nos fins-de-semana sempre animado por grupos de homens, na sua maioria mineiros que, entre cada rodada, exprimiam em coro a sua amargura, mas também a força coletiva através do agora celebrado “cante alentejano”.
Aquele acorrentado atrás dos cavalos da GNR poderia ser um “maltês”, o nome dado a quem, sem emprego certo nem inserção na comunidade, procurava o precário sustento andando de monte em monte, à míngua de uns dias de trabalho “a comedias”, como se dizia, ou seja, em troca de umas sopas e pouco mais (“come-a-dias”, porque havia muitos sem nenhuma comida, presume-se). Mas como se esse não fosse já um castigo suficiente, tratava-se de uma condição considerada não só “ilegal” como aparentemente ameaçadora para a ordem vigente. Por isso, o mínimo descuido era suficiente para que o desgraçado fosse parar à “pildra”. Pior ainda, para além da prisão, era a exibição pública da punição exercida sobre quem fugia de uma suposta “norma social”, na verdade artificial e só mantida por um regime ditatorial. Esses eram os malteses, um nome que na época carregava um sentido pejorativo que até as crianças temiam. Ser diferente já era uma ameaça que, não apenas o regime mas a própria comunidade olhava com suspeição. Mas os outros, aqueles que não andavam na mina, iam diariamente “à praça”, um “mercado” de força de trabalho, em sentido literal que decorria no largo principal da aldeia, onde, com alguma sorte, se poderia ser um dos escolhidos para trabalhar naquele dia. Trabalhos de sol a sol, enquanto os da mina, embora produzindo na escuridão e à luz do gasómetro, tinham pelo menos um emprego certo.
Estas memórias não se apagam. Nesse período ocorreram algumas greves nas minas. Recordo que numa delas a aldeia inteira andou em alvoroço quando se soube que a guarda tinha carregado sobre os mineiros. Umas dezenas foram presos. Alguns eram de Rio de Moinhos (a aldeia de que falo) e até um tio meu, soube depois, tinha sido levado para Lisboa, pela PIDE. Não ficou muito tempo na prisão, mas para um homem honrado e por todos respeitado – um assalariado para quem a única “subversão” cometida era trabalhar no duro para alimentar os filhos, ingerindo aquele pó durante décadas, que lhe provocaria o cancro que o matou anos depois –, as “duas chapadas na cara” que lhe foram dadas por um qualquer esbirro do regime, para que confessasse os nomes dos cabecilhas da greve, já foram um preço inconcebível. A dureza da vida no Alentejo nesses anos de penúria e repressão, para quem nasceu e vive como alentejano, não é uma mera “recordação”, é sim um elemento que se inscreve na própria identidade alentejana, pois a sua força é indissociável da resistência (em geral silenciada pela ameaça, nos anos de chumbo do salazarismo). O ressentimento cultivado por comunidades inteiras, por terem sido pisadas décadas a fio pelos protegidos do regime, não apagou o afeto, mas, para um alentejano, este não se mede pelo palavreado fácil. Pessoalmente sinto-o no acolhimento, no sorriso largo, na oferta de guarida ou do almoço, de braços abertos, em cada viagem às origens. Cada regresso é como um aconchego no seio de uma grande família cujos gestos protetores se perpetuam através das gerações. As caras de hoje, umas mais jovens, talvez de terceira geração, outras mais enrugadas – as que ainda reconheço –, foram transmutadas pelo tempo, mas é a mesma família.
Felizmente, as conquistas democráticas devolveram alguma dignidade ao Alentejo, mas apesar do envelhecimento demográfico, não apagaram essa força cultural que hoje é reconhecida em diversos domínios patrimoniais, com destaque para os grupos corais ou a viola campaniça.
Os fluxos migratórios dos anos sessenta também marcaram a região e até aqueles que, como eu, não tiveram de atravessar fronteiras “a salto” para fugir da miséria (ou da guerra), foram reinventar a identidade do Alentejo para outras paragens, menos rurais mas ainda assim com um agudo sentido comunitário. Por exemplo, o bairro de Moscavide, onde vivi na década de 1970, forneceu-me o contexto suburbano onde as referências alentejanas se misturavam com outras origens. A chamada “cintura industrial de Lisboa” tem uma forte ligação ao Alentejo, como atestam os diversos movimentos de solidariedade com as lutas de mineiros (nomeadamente os de Aljustrel) e assalariados agrícolas alentejanos. E na margem sul do Tejo, na CUF, na Lisnave, na Setenave ou nas povoações de Almada, Barreiro ou Baixa da Banheira e de um modo geral nos municípios do distrito de Setúbal, a “marca Alentejo” permanece bem visível, incluindo nos nomes e noutros traços culturais reinventados a partir dos vínculos com a região. A riqueza artesanal, musical e gastronómica, recriam-se nas segundas e terceiras gerações que não perderam a memória e tudo isso se soma aos muitos milhares de portugueses que, não tendo nascido no Alentejo, sentem uma profunda identificação com a sua cultura e até com a própria geografia.
Mas a profundidade afetiva e identitária a que me refiro, apesar de se manifestar no sentido coletivista e na solidariedade, não dilui, muito menos apaga, as diferenças individuais, pelo que, independentemente dos percursos de cada um, as raízes e as origens sociais não se escondem nem se desprezam, nem pelo mais bem-sucedido cosmopolita ali nascido. Um alentejano assumido pode ficar ou partir, mas mesmo quando parte nunca se separa. Caminha pelo mundo com o Alentejo na alma.