Apesar da recente mudança de ciclo político no nosso país, a acentuada regressão dos direitos do trabalho e o quase desaparecimento do “emprego digno” – em especial no quadro da UE – são uma realidade que parece irreversível quando se desenham no mundo novas configurações e modelos produtivos marcados pela crescente flexibilidade e vulnerabilidade da classe trabalhadora. Neste contexto, é fundamental prestar atenção às vozes do sindicalismo, que agora se reúnem no XIII Congresso da CGTP. Num momento tão adverso para as condições de trabalho, um sindicalismo combativo e revigorado impõe-se como imperativo para a coesão social.
A longa atividade de pesquisa e intervenção cívica que vimos desenvolvendo sobre o mundo do trabalho, muitas vezes em colaboração com dirigentes e quadros sindicais de diversas sensibilidades, cujo diagnóstico crítico tem sido publicado em diversos estudos (veja-se, por exemplo, o livro coletivo «O Sindicalismo Português e a Nova Questão Social - crise, consolidação ou renovação?» 2011, que contou com a participação de dirigentes e quadros sindicais ligados às duas principais confederações, CGTP e UGT), bem como a visão crítica do atual sistema económico, traduzida em diversos textos e no programa de doutoramento que coordenamos, «Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo» (que vai na sua quinta edição), dão-nos argumentos que nos protegem de qualquer rótulo de “anti-sindicalismo”, como é costume acontecer sempre que se critica o poder hegemónico na Intersindical.
Como cientistas sociais, estamos cientes de que a sociedade e a esfera do trabalho são realidades cada vez mais complexas e que, nessa medida, qualquer perspetiva maniqueísta corresponde a uma simplificação que não ajuda a um diagnóstico sério, e que enfraquece o sindicalismo. A realidade é complexa e o entendimento do mundo atual exige ferramentas adequadas à enorme instabilidade gerada pelo capitalismo desregulado de hoje. Ter consciência disso pressupõe também que nos libertemos de velhos preconceitos e clichés ideológicos forjados num tempo muito diferente do contexto do século XXI em que vivemos. Ora, é justamente porque as estruturas sindicais se apresentam em geral blindadas perante uma atitude de abertura e de “humildade científica” que – como académicos mas também como ativistas sindicais e cidadãos – sentimos o dever de consciência de intervir neste debate.
Entendemos, pois, que uma crítica (construtiva) do sindicalismo português pressupõe um olhar autónomo em relação às propostas e programas oficiais (seja qual for a tendência em causa) porque só dessa forma se pode contribuir para um conhecimento sociológico rigoroso, capaz de ajudar a fortalecer o campo sindical. E isto aplica-se evidentemente à CGTP que, em diversas ocasiões, tem comprovado o seu alinhamento incondicional face ao discurso e ao programa do PCP. Em muitos países, diversos ativistas e académicos têm realçado as dificuldades das estruturas sindicais de base nacional, fundadas na era do industrialismo e das soberanias fechadas do Estado-nação, em se ajustarem ao mundo mais instável das redes e dos movimentos de âmbito global. Para além da crítica à burocracia e às lógicas oligárquicas que tendem a instalar-se nos sistemas estáveis, muitos falam da necessidade de uma autêntica “reinvenção” do sindicalismo para que possa adequar-se aos tempos do novo “precariado” e de uma classe média em declínio. A precariedade generalizada de hoje corresponde à “quebra do contrato” fundado no compromisso de classes da Europa do pós-guerra, que abriu caminho ao período mais “glorioso” das conquistas sociais dos trabalhadores. Num tempo de implosão e desaparecimento da velha classe operária, a atual geração de trabalhadores “proletarizados” – cada vez mais qualificada e cujas subjetividades e modos de vida replicam expectativas e “habitus” com marcas de classe média – já não adere, nem entende, uma retórica sindical que se limite a reproduzir os velhos slogans da “vanguarda operária” dos tempos de Marx e Lenine.
Os nossos sindicalistas “de classe” têm dificuldade em compreender que os operários industriais apenas foram maioria da população ativa neste país durante um par de anos a seguir ao 25 de abril. A terciarização da economia arrastou consigo códigos e referências que, ao longo de quatro décadas de democracia, forjaram um universo cognitivo típico de classe média, e isso afastou a maioria da força de trabalho de um discurso gasto e desajustado. Paradoxalmente foram principalmente esses setores profissionais (professores, funcionários públicos, médicos, bancários, profissões estáveis e qualificadas) que mais se sindicalizaram. E fizeram-no porque perceberam que a narrativa em nome da classe operária já não tinha correspondência prática com uma ação coletiva tipicamente corporativista e materialista (prevalecente nesses setores).
Nos documentos preparatórios do XIII Congresso continuam a pontificar algumas das orientações de sempre e, como de costume, uma – a nosso ver excessiva – colagem ao PCP. No plano organizativo fala-se na criação de novos métodos de trabalho; em “renovar e rejuvenescer a estrutura”; ampliar e reforçar a rede de delegados sindicais; em formação sindical inicial e contínua; em formas de organização descentralizada/ “casas sindicais com serviços comuns”; dinamizar a “Interjovem” e a Comissão para a Igualdade entre Mulheres e Homens, e da Inter-reformados; melhorar a informação e comunicação sindical, etc. São sem dúvida boas intenções. Mas nota-se que em questões como as desigualdades de género, os direitos das minorias (nomeadamente no campo da orientação sexual e LGBTs) ou o domínio da “Internet” e das redes sociais como potencial fator de consolidação do ativismo sindical, ainda surgem como assuntos secundários ou temas-tabu.
É verdade que desde os tempos da liderança de Manuel Carvalho da Silva e já no período recente de intervenção da troika a central mostrou alguma abertura para se aproximar de outros sectores e protagonistas da ação coletiva, nomeadamente os movimentos de precários. Tratou-se porém de gestos pontuais. Na nossa perspetiva as reformas de que o sindicalismo português carece continuam por cumprir: 1. Uma efetiva renovação dos quadros, com maior presença de jovens e mais mulheres no topo; 2. Maior descentralização/ democratização do debate no relacionamento entre as cúpulas e as bases; 3. Mais parcerias e ações concretas com organizações e movimentos não sindicais; 4. Uma aposta efetiva na formação de quadros, através do envolvimento com universidades e entidades independentes; 5. Dinamização do sindicalismo eletrónico, com estímulo ao ativismo do “ciberespaço”; 6. Abertura ao sindicalismo internacional, nomeadamente com a integração na Confederação Sindical Internacional (onde a CGTP não se encontra filiada).
Sabemos bem que estas sugestões não resolvem, por si só, os problemas do sindicalismo, até porque o principal se encontra a montante. Ou seja, o mais importante será uma visão estratégica e autónoma das estruturas dirigentes – e isto aplica-se a todo o campo sindical – na busca de um entendimento do mundo fora dos cânones impostos pelas rotinas e “certezas” que as ortodoxias constroem ao longo dos tempos.
Enfim, o presente é difícil e o futuro é inquietante. Fica a dúvida se perante um cenário político-parlamentar hoje menos favorável à “luta de massas”, a CGTP se mostrará mais aberta ao “diálogo” ou se continuará a privilegiar a “vigilância” da ação governativa e o combate nas ruas e locais de trabalho. Poderá uma tal opção, a verificar-se, funcionar como elemento de “compensação” da atual “anuência” do PCP face às políticas (a começar pelo Orçamento de Estado) do governo de António Costa? Acentuar-se-á o combate à União Europeia e a luta pelo regresso da soberania nacional? Vivemos um tempo de incerteza e de recuo do campo sindical. Por isso mesmo, só um sindicalismo mais aberto, renovado e rejuvenescido pode ajudar a abrir perspetivas e a revitalizar esperanças coletivas que invertam a atual tendência.