Nas mil palavras dos nossos representantes políticos, a segurança sobrepõe-se à humanidade.
Há imagens que nos marcam para todo o sempre. Cada um de nós tem algumas, pessoais, familiares. Todos, em conjunto, partilhamos algumas de que falaremos ao longo da nossa vida. Ghandi, Mandela, João Paulo II, Obama, Saramago, Malala, Xanana, Lennon, Bowie são também seres em imagens. Conhecemos Aylan Kurdi apenas quando morreu mas creio que também não o esqueceremos.
Da guerra da Síria há imagens muito fortes. Vídeos e fotografias mostram-nos a destruição de Alepo, as populações civis em fuga, filhos mortos nos braços das suas mães, soldados feridos, campos de refugiados. É verdade que tudo começou há quase 5 anos e por isso estas imagens já não nos chocam como deviam. Perderam parte da capacidade de nos derrubar o egoísmo.
Há, por estes dias, um vídeo que contém muitas das imagens que (ainda) nos marcam como ferros em brasa. É um trabalho de gente grande (com H). Quem ainda não o viu ganhe uma parte do seu tempo e sinta-se humano. Se não sentiu nada é tempo de pensar no que faz por aqui.
O drama dos refugiados que fogem da guerra, cujas imagens já não nos fazem sofrer. O drama “deles” continua e chega cada vez mais perto de nós. O inverno abrandou o ritmo das barcaças que atravessam o Mediterrâneo, mas a primavera está a chegar ao Sul da Europa. Adivinha-se um novo fluxo de seres humanos em busca de paz, de proteção e de refúgio.
A vida continua do lado de cá do muro Europa. Vemos, ouvimos e lemos, mas podemos ignorar. O sol brilha de novo, a nossa tempestade já passou.
Nas mil palavras dos nossos representantes políticos, a segurança sobrepõe-se à humanidade. Mil palavras gastas para fechar fronteiras, proteger fronteiras, vigiar fronteiras, construir fronteiras. Como se a fronteira não fosse nos discursos de mil palavras um artifício de linguagem para a separação, a discriminação, a humilhação. Georg Simmel referia-se à estrutura “que ao mesmo tempo separa e une, como a ponte e a porta” numa imagem forte que se enraíza em nós.
Acolher uma parte dos refugiados Sírios na União Europeia é um imperativo de civilização. Não podemos fingir que as imagens não nos deixam marca. Faltam fundos e coragem política. Falta coragem política para obter fundos. É preciso encontrar um equilíbrio entre o nosso egoísmo e a nossa responsabilidade. Há vários meses que a Comissão Europeia e as organizações humanitárias chamam a atenção para a necessidade de angariar mais fundos para um plano comum de acolhimento dos refugiados na União Europeia. Soros propôs um empréstimo europeu (pago coercivamente pelos 28 Estados-membros). Outros notáveis propuseram já um imposto europeu extraordinário. Decorrem na internet leilões de arte, crowdfunding, recolha de donativos. São boas ideias. Nada do que existe atualmente será suficiente face ao expectável aumento de refugiados.
A estrutura a que se referia Simmel não era a fronteira como sugeria o encadeamento de palavras. Simmel referia-se ao dinheiro e ao seu papel mediador “que ao mesmo tempo separa e une, como a ponte e a porta”. Neste início de primavera encontrar o dinheiro é construir a ponte. Se cada europeu, cada um de nós, quisesse dar um euro em cada mês do ano de 2016 talvez as margens ficassem mais perto.