É costume dizer-se que a política é a arte do possível. Mas há momentos em que o possível não basta. Estamos a viver um desses momentos. Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito presidente da República. Já muito se disse e escreveu sobre o contexto que propiciou a sua eleição e sobre perspetivas do mandato que vai exercer. Sinteticamente poderá afirmar-se que as forças da Esquerda perderam e alguns dos derrotados padecem de dores que exigem tratamento sério; estamos em tempos de não delegar responsabilidades e perante a necessidade de revitalizar a ação política e social para se construírem novas hegemonias; a vitória de Marcelo não propiciou grandes aquisições à Direita, mas o centrão de interesses, que tem ajudado a subjugar o país, sente-se em condições de retomar a ofensiva e aumentar o cerco a António Costa e ao seu Governo. Marcelo parece à procura de um espaço e estilo muito próprios para o exercício da Presidência mas, à luz do que se conhece da sua origem política, personalidade e práticas, é caso para dizer que as coisas só poderão correr razoavelmente se ele for capaz de transformar a sua própria natureza.
Entretanto, aí estamos em plena discussão do Orçamento do Estado (OE) para 2016. O esboço apresentado pelo Governo vem confirmar que: i) existe a pretensão de equilibrar viabilidade orçamental, com justiça social e dinamização da economia; ii) o Governo aposta na negociação com a União Europeia (UE) sem romper com os compromissos assumidos entre os partidos da Esquerda; iii) os espartilhos impostos pela UE são enormes e a cartilha das chamadas equipas negociais é a agenda neoliberal violenta do Partido Popular Europeu, despida de sensibilidade social e de valores humanos; iv) as agências de rating e os mais variados organismos, falsamente designados de independentes, seguem a mesma linha e troçam da vontade dos povos; v) o Governo tem de aclarar e fundamentar escolhas adotadas e mostrar de forma clara a sua predisposição para os combates que aí vêm.
É possível virar a página da austeridade no quadro das regras do euro? Depende, em parte, da interpretação das regras, que parece ser mais flexível para uns do que para outros. Mas a interpretação das regras, em última instância, tem sido feita por quem tem a faca e o queijo na mão, e desses, como a evolução dos acontecimentos já vai mostrando, não é de esperar boa vontade. Os partidos da Direita cavalgam despudoradamente a "realidade" instituída pelos poderes dominantes, seguindo o caminho da traição à soberania nacional e aos interesses do povo. Hoje é claro que nada mais têm para propor aos portugueses que o prosseguimento das políticas desastrosas dos últimos cinco anos.
A possibilidade de virar a página da austeridade, com regras do euro interpretadas de forma flexível, depende significativamente de acontecimentos que parecem estar para lá do possível - o reforço das posições, no quadro negocial europeu, dos que defendem a viragem da página da austeridade, não só nos seus países, mas no conjunto da UE em benefício de todos. Isso resultará, em primeiro lugar, da firmeza e capacidade negocial de cada Governo, desde logo do nosso e da sua habilidade de articulação de vontades. Será impossível? Façamos com que não seja. O "possível" que nos querem impor, a partir da "realidade" que lhes interessa - a continuação da austeridade e do empobrecimento - é, sem dúvida, um "possível" injusto, indigno e inconcebível.
O OE que temos em debate é muito modesto nos seus objetivos gerais. Portugal tem o direito e o dever de definir políticas que assegurem desenvolvimento económico, reposição de proteção social, melhoria do ensino, da saúde e da justiça, que garantam regulação e regulamentação do trabalho capazes de proteger e criar emprego, que diminuam a precariedade e reponham o direito à negociação coletiva, por forma a que o salário mínimo nacional não se transforme em salário nacional.
Neste confronto em aberto, os portugueses não ficarão mal vistos se lutarem empenhadamente pela sua dignidade e soberania, pelo direito ao desenvolvimento efetivo da sociedade.