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10-01-2016        Jornal de Notícias

Em quarenta dias, pela ação da direita do Governo e do Partido Socialista que o apoia, mas também em resultado dos compromissos assumidos com o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista e os Verdes, e pela intervenção destes na Assembleia da República (AR), foram dados ou estão em curso pequenos passos corajosos de justiça e dignidade - desde o aumento do SMN, à reposição de mínimos sociais, à reversão de algumas privatizações e concessões, entre muitos outros - que, se prosseguidos com determinação e coerência, podem ir afastando medos, trazendo a esperança e a confiança necessárias ao desenvolvimento do país.

O caminho é estreito e de forma alguma se pode confundir estes importantíssimos pequenos passos com uma política alternativa. A construção de uma hegemonia na sociedade capaz de lhe dar suporte - que penso ser possível, se o povo for sentindo que estas políticas são assumidas por ele e em resultado das suas reivindicações e anseios - será um processo muito laborioso a nível interno e na ultrapassagem dos espartilhos colocados pela União Europeia.

O entendimento à Esquerda, conseguido na sequência das eleições de 4 de outubro, proporcionou a todos os portugueses que se opuseram ao descalabro experimentado em cinco anos de empobrecimento uma certa sensação de objetivo atingido e de agradável surpresa, que desencadeou uma espécie de alívio. O efeito desses sentimentos marca ainda o comportamento de muitos.

O novo ciclo político é muito desafiador: não podemos permitir o prolongamento dessa descompressão, sob pena de se converter em passividade com efeitos nefastos no imediato, por exemplo, favorecendo a eleição de um presidente da República da Direita e, a prazo, comprometendo a busca e a afirmação de uma efetiva alternativa de políticas.

A existência de uma nova maioria na AR e de um Governo dotado de um programa apoiado por essa maioria não deve traduzir-se numa confiança despreocupada ou preguiçosa, ou numa delegação de responsabilidades por parte de movimentos sociais e de cidadãos que se opuseram à austeridade. A mobilização de vontades e de recursos dos movimentos sociais e da cidadania é, pelo contrário, uma condição de sucesso da nova governação.

O novo contexto não dispensa um aprofundamento da crítica à interpretação hegemónica das crises que nos tem subjugado, ou seja, à cartilha neoliberal que a alimenta. O insucesso político da coligação de partidos e forças económicas e sociais que promoveu a austeridade significou um rude golpe para a Direita e forçou-a a um recuo, mas não estamos perante uma derrota da ideologia que lhe serve de suporte, apesar das (aparentes) alterações programáticas e da mudança de alguns protagonistas. A "narrativa" das crises laboriosamente construída e militantemente disseminada no espaço público, sobretudo a partir de 2010, continua a influenciar muito o debate público e a condicionar a capacidade coletiva de imaginar e afirmar alternativas de política. É preciso, por isso, continuar a aprofundar-se o esclarecimento das causas das crises e a aperfeiçoar a linguagem usada para comunicar este esclarecimento. Há muitos portugueses encurralados pelos bloqueios em que foram colocadas as suas vidas e, por outro lado, o enredo de jogos de interesses promíscuos e de "roubo legal" é quase indecifrável para o comum cidadão.

É preciso um maior contributo da cidadania à elaboração de alternativas. A conceção de alternativas de política em domínios cruciais (União Europeia, segurança social, combate à pobreza, relações laborais, desenvolvimento territorial, sistema financeiro e endividamento...) constitui uma tarefa prioritária dos partidos políticos, mas não pode ser entregue apenas aos partidos e ao diálogo entre eles, ou à Administração Pública. No novo contexto, é mais importante do que nunca construir um espaço amplo de análise, construção e deliberação, que transcenda fronteiras partidárias, ideológicas e cognitivas, onde possam emergir visões, programas, propostas e dinâmicas de mobilização da sociedade.

Em todos os campos da vida social e da intervenção cidadã e política, é preciso não delegar.


 
 
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Manuel Carvalho da Silva



 
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