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23-11-2015        Le Monde Diplomatique

O movimento LGBTIQ* em Portugal tem uma história notável. Após uma mão cheia de iniciativas dispersas nos anos 1970 e 1980, cujo impacto simbólico não pode ser esquecido, assistimos à emergência do que podemos designar por movimento social na década de 1990, com a constituição de vários coletivos e uma série de iniciativas de carácter regular e com visibilidade pública. Recorde-se, a título de exemplo, que é em 1997 que surge a primeira edição do Festival de Cinema Gay e Lésbico, bem como o primeiro Arraial LGBT de acesso livre e em espaço público. A consolidação deste movimento acontece na década seguinte, coincidente com a organização da primeira marcha do orgulho em Lisboa em 2000 e, paralelamente, um conjunto de transformações importantes na esfera jurídica. Estas transformações começaram pela aprovação de uma lei de uniões de facto para todas as pessoas, em 2001, que veio colocar fim a um longo período de suspensão dos direitos LGBT no enquadramento jurídico nacional. Desde então, o impacto jurídico, político e social do movimento LGBTIQ, nas suas mais variadas expressões, constitui um estudo de caso incontornável para qualquer pessoa interessada em direitos humanos e movimentos sociais. A cronologia de reivindicações, avanços e retrocessos na esfera jurídica está feita, publicada e acessível. Por isso, neste artigo, mais do que a descrição de marcos históricos, escolho centrar-me em aspetos que emanam desta história recente.

Começo pelo tempo dilatado que manteve os direitos LGBT cativos num armário blindado durante duas décadas. Com efeito, desde a descriminalização da homossexualidade em 1982 até à aprovação da lei de uniões de facto, foram precisos 19 anos – todos eles em pleno contexto de democracia – para que fossem efetivadas medidas de reconhecimento formal de direitos independentemente da orientação sexual. Se fizermos esta contagem desde o estabelecimento do regime democrático em 1974, o peso dos anos adquire um significado maior – em plena democracia, demorámos 27 anos para que o quadro legislativo nacional incluísse cidadãs e cidadãos não heterossexuais. Pese embora este intervalo tremendo, tal inclusão foi ainda muito parcial, inaugurando um processo que insiste em permanecer incompleto. No caso de pessoas transgénero, a décalage é de 10 anos face a direitos que visaram combater discriminações com base na orientação sexual. Na prática, isto significou que levámos 37 anos de regime democrático até que o ordenamento jurídico nacional incluísse de forma explícita direitos que respeitam as pessoas transgénero, facto que veio a acontecer apenas em 2011 com a chamada lei de identidade de género. Ora, estes intervalos em tempo democrático são dolorosos a vários níveis, mas sobretudo porque a democracia, sendo o melhor de todos os regimes possíveis, é o campo da justiça, da igualdade e da emancipação. Não o seu contrário. Não se percebe, portanto, como foi sustentável manter milhares de pessoas no limbo jurídico, empurrando-as para o campo sempre frágil do reconhecimento tácito, e dando com isto sinais de uma tremenda imaturidade política e social.

Estamos em 2015. A Constituição da República Portuguesa garante, desde 2004, que ninguém pode ser discriminado em função da orientação sexual (artigo 13º. Princípio da Igualdade). De uma marcha anual em Lisboa passámos a ter várias em cidades como o Porto, Coimbra, Braga ou Ponta Delgada. Há hoje novos diálogos e alianças entre movimentos sociais e demandas na esfera da cidadania sexual (por exemplo, entre pessoas assexuais e pessoas não-monogâmicas). No espaço de pouco mais de uma década assistimos a uma aceleração significativa do reconhecimento formal de direitos LGBT que, como vimos, tardou inexplicavelmente em chegar. Esse reconhecimento contem medidas de proteção familiar, de regulação da relação laboral, de combate à violência na escala individual e doméstica, entre outras. Mas continuamos a testemunhar leis parciais e contraditórias, leis que promovem a ilegalidade, leis que confundem capacidade parental com orientação sexual, leis que falham em proteger as pessoas intersexo, leis assentes em pressupostos heterosexistas e mononormativos, que insistem na fantasia de um núcleo familiar invariavelmente heterossexual, reprodutivo e em coabitação. A dignidade humana são pode ser comprometida pela ideia de maioria e as pessoas não podem ser reduzidas a números, bem o sabemos. Mas talvez ajude pensar que, nesta matéria, até mesmo os números nos revelam a fragilidade desse mito de uma família com os contornos descritos. Em Inglaterra, já em 2001, apenas 22% da população correspondia ao modelo de um casal heterossexual com crianças.

Não devemos esperar apenas medidas de proteção; é chegado o tempo de medidas de proação, medidas que valorizem o espectro de possibilidades de realização sexual de que dispomos, enquanto animais humanos; medidas que garantam o justo reconhecimento pelos diversos modelos relacionais e familiares através dos quais se constrói a biografia íntima de cada pessoa; medidas que celebrem a sexualidade, o prazer, a autonomia, o consentimento, a escolha informada. Tais medidas, urgentes e em consonância com princípios de dignidade humana que não são negociáveis, requerem o envolvimento transversal da sociedade civil. O próximo passo, que na verdade antecede e acompanha o passo jurídico, é o da transformação sociocultural. Já o sabemos – não se mudam mentalidades por decreto. Precisamos pois de investir na educação formal e não formal, de promover o respeito pelos direitos humanos, de exigir que as nossas crianças e adolescentes cresçam num ambiente educativo que acolhe a diversidade sexual e de género enquanto valor a proteger. Nesta tarefa a responsabilidade primordial é do Estado e o Estado somos nós.

Mas não se produz transformação sociocultural ou jurídica de uma forma sustentada sem um suporte de conhecimento que o sustente. Precisamos pois de fortalecer o papel da universidade, nas vertentes docência e investigação linhas de financiamento adequadas, através do reconhecimento dos Estudos de Género enquanto área interdisciplinar de saber e não área subsidiária de outras disciplinas; do ensino de Estudos de Género nos vários graus de ensino; do fortalecimento das associações científicas e/ou profissionais que trabalham nesta área (por exemplo, a APEM); da valorização do trabalho conjunto entre academia e sociedade civil, com reconhecimento alargado do impacto das atividades de extensão; de uma Comissão para a Igualdade de Género e Cidadania que acolha, em pé de igualdade e dignidade, o trabalho na área da prevenção e do combate a discriminação com base no sexo, na orientação sexual e relacional, e na identidade de género.

Não é verdade que somos todos iguais. Mas é urgente que sejamos, de facto, todos iguais perante a lei, tal como a Constituição da República Portuguesa nos garante – promete? – desde 1976.

* Nota da autora: A designação LGBTIQ inclui pessoas auto-identificadas como lésbicas, gays, bissexuais, transgénero, intersexo e queer. É possivelmente, parafraseando, a mais inclusiva das designações possíveis.


 
 
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Ana Cristina Santos



 
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