Quem imaginaria Portugal, neste final de 2015, numa situação política com a direita acicatando a luta de classes utilizando o terrorismo verbal (só verbal?), desenvolvendo um fortíssimo ataque ao regime democrático-constitucional e instabilizando a sociedade?
As eleições de 4 de outubro foram, sem dúvida, de enorme importância e alcance. Podemos orgulhar-nos como povo: quando o bloqueio e a subjugação eram apresentados como inevitáveis para o nosso futuro próximo, com enorme serenidade e consciência, os portugueses usaram a arma do voto e abriram portas para novos caminhos. A direita não lhes perdoa. Para a direita, o povo – que tinha sido por eles convocado a sofrer por ter cometido o pecado de “viver acima das suas possibilidades” – deve agora ser obrigado a votar tantas vezes quantas as necessárias – tenha isso os custos que tiver – para corrigir o “erro” de não lhes ter dado a maioria absoluta.
Os portugueses têm naturais receios de novas doses de austeridade, sabem que os tempos que vivemos exigem rigor e honestidade (valores que os poderosos espezinham todos os dias), mas não abdicam de sonhar e buscar caminhos de futuro. A resistência dos últimos anos não foi em vão e propiciou muitos ensinamentos, felizmente interpretados com grande sentido de responsabilidade e coragem pelos partidos políticos à esquerda, perante os resultados eleitorais obtidos. Como vai projetar-se no futuro este facto não sabemos, mas o início da caminhada é bom.
Cumprindo as determinações do nosso regime democrático-constitucional, a Assembleia da República mostrou, de forma inequívoca, que a direita não tem sustentação parlamentar para governar; e gerou condições bem claras para o Partido Socialista (a segunda força mais votada) constituir governo, aprovar um programa, cumprir todos os compromissos nacionais e internacionais que terá de efetivar em nome do país, e começar a governar com políticas alternativas à austeridade e à subjugação de Portugal.
Há fatores novos na predisposição dos partidos políticos da esquerda, surgiram formas diferentes para definir e expressar compromissos, houve práticas dominantes que foram abandonadas? Pois houve! Mas são democráticas e constitucionais as que foram adotadas. Não é à direita, nem a um PR que se comporta politicamente de forma mesquinha, que compete estabelecer quem pode ou não apoiar um governo; ou determinar como as forças políticas se podem apresentar aos eleitores.
A direita e o Presidente da República (PR) não têm preocupações com a hipótese de o novo governo do PS vir a ser frágil ou não se aguentar muito tempo; antes pelo contrário, esse é o seu mais profundo desejo! O que tentam é impor parâmetros de compromissos não necessários, que inviabilizassem esta solução de governo. O que desejavam era ter mais “espantalhos” para assustar o povo, a União Europeia (UE), os seus santos mercados.
Estamos num tempo de desrespeito da vontade do povo e de “crispação” – que o PR favorece ao retardar a nomeação de António Costa –, em que se indignam os que causaram indignação e ameaçam sublevar-se os que sempre armaram polícias até aos dentes e que manipulam a legalidade para defender a sua ordem e seus interesses egoístas.
Já vimos o povo irlandês ser obrigado a corrigir o “erro” que cometeu quando recusou em referendo um tratado europeu. O povo grego levado às urnas (sem sucesso) até que fosse obtido “democraticamente” o resultado mais conveniente aos mercados e aos mandantes de uma UE à deriva. O povo turco chamado a votar de novo, depois de declarado um estado de guerra a inimigos externos que afinal também eram internos! Mas, por estes caminhos a UE não tem futuro.
Há uma direita encalhada em conceções velhas e reacionárias, que não olha a meios. Essa direita mistura-se com outra direita institucional, razoável e respeitadora de regras. Para que a serenidade volte, e é indispensável que volte, é preciso separar águas. É preciso saber distinguir e tanto quanto possível confinar no seu canto a direita radical.
O mínimo que se pede a este PR é que, mesmo a contragosto, fique do lado da direita que é capaz de viver em democracia e nela participar responsavelmente.