Os percursos fluídos e instáveis que caracterizam a juventude podem comparar-se aos voos incertos da borboleta. Mas se a instabilidade e a contingência ilustram as trajetórias juvenis de hoje, as tonalidades coloridas e perfumadas dos seus movimentos furtivos talvez não compensem a vulnerabilidade e a curta duração da aventura.
Houve um tempo em que a condição juvenil podia viver nas asas da liberdade, voar sem um destino definido, mas com a certeza de que teria um porto seguro à sua espera. Hoje, a juventude passa por uma fase particularmente difícil e milhões de jovens têm o seu futuro hipotecado. As perplexidades do presente empurram-nos para a evasão ou para a fuga permanente, saltam de um pouso para outro, de lugar para lugar, por caminhos menos coloridos. O sentido de aventura permanece mas a construção do destino é um labirinto armadilhado, repleto de riscos e ameaças.
A profissão de professor oferece-nos o imenso privilégio de lidar diariamente com a juventude – beneficiando do contágio dos “eternamente jovens” que se sentam à nossa frente – e ao mesmo tempo poder interferir nas suas trajetórias educacionais e profissionais. Os percursos juvenis, mesmo considerando apenas os segmentos mais qualificados, têm sofrido alterações substanciais nas últimas décadas não só devido à intensificação geral dos fluxos de mobilidade internacional mas, em especial nos últimos anos, devido aos efeitos da crise, que, em países como Portugal, tem empurrado para a emigração largos milhares dos nossos melhores jovens.
O Hugo é um desses jovens, hoje um “jovem-adulto” e a constituir família, que acompanho há cerca de dez anos. Vive há dois anos no Brasil mas adora o seu país. Assume com toda a naturalidade o seu jeito de falar (sem sotaque) apesar de ser casado com uma brasileira, que conheceu em Coimbra há cerca de dez anos. Acompanha com toda a atenção e interesse a política portuguesa e europeia, mas ao mesmo tempo sente-se cada vez mais envolvido com os problemas do Brasil. Estando lá, e gostando embora da vida que leva e da carreira profissional que iniciou após concluir o doutoramento, queria estar por cá. Não lhe perguntei mas tenho a certeza que o Hugo gostava de andar por aqui, no último mês, provavelmente participando ativamente na campanha eleitoral, pelo partido em que militou e ainda milita (mesmo à distância). Aí está um exemplo concreto do que falei no início: a mobilidade, o acesso a um doutoramento, a ausência de futuro no seu país, tudo isto se junta às contingências da vida atual, sejam as oportunidades profissionais que precisam de ser cada vez mais “trabalhadas”, seja o amor, onde os encontros e desencontros também se fazem de incerteza e do acaso. Sim, de certo modo sempre assim foi. Mas hoje a escala mudou e funciona cada vez mais sob fluxos transnacionais e transcontinentais.
Neste Verão convivi de perto com diversos grupos de jovens ligados à universidade, falantes de português. Mestrandos e doutorandos brasileiros olham para a Europa e para Portugal com um misto de apreensão, curiosidade e interesse. Sente-se o desejo de compreenderem o mundo em que vivem, de compreenderem o seu país, também ele no meio de uma encruzilhada e sem rumo definido. Muitos destes estudantes foram ou são militantes de causas sociais diversas, querem evitar desastres maiores, mas sentem-se impotentes. A urgência dos seus problemas individuais é mais forte. Confrontam-se com o desencanto de quem nasceu num país eternamente adiado, mas não desistem de construir as suas oportunidades, de consolidar um padrão de vida. Há três anos estavam eufóricos; há dois, perguntavam-me, já preocupados, como estávamos a suportar a crise em Portugal; no ano passado, após uma acesa disputa eleitoral, a coisa piorou abruptamente; hoje, mais do que a apreensão é a revolta contra a elite dirigente que se advinha em cada pergunta, em cada comentário que vem da plateia.
Curiosamente, o que pressinto na atual juventude académica do Brasil é uma atitude ambivalente em relação ao sistema: criticam o poder do capital ocidental e dos EUA, mas admiram o modelo social europeu. Apesar da crise, olham-no ainda como uma referência para um projeto desenvolvimentista brasileiro, mas o excesso de mercantilismo que domina hoje a Europa é visto como expressão de um capitalismo à rédea solta que nos empurra para a catástrofe. Porém, gozam dos benefícios da sociedade de consumo: como li no muro de uma universidade, “O sistema é mau, mas minha turma é legal...”. Nas subjetividades desta juventude, no seu sentido lúdico, nas suas atmosferas de convivialidade, na sua vontade de aventura, podem vislumbrar-se o sentido de realização e de iniciativa que emanam do seu elevado capital cultural e educacional. Cultivam, como os portugueses e outros europeus, o hedonismo e o fruir de uma sociedade de consumo cujos símbolos de prosperidade, porém, se tornaram para a maioria deles miragens intangíveis. A ambição pessoal destes jovens está patente no constante “networking”, talvez um modo brasileiro de ser “empreendedor”. Eles sabem bem que um estágio numa universidade europeia, uma bolsa-sanduíche, um doutoramento numa instituição prestigiada, lhes poderá abrir as portas de uma futura carreira (no seu país ou fora dele). Os jovens brasileiros circulam pela Europa, parte deles usando Portugal como trampolim e, de caminho, aproveitam para conhecer um pouco melhor a morfologia das suas raízes lusitanas (ou outras).
A Ana fez mestrado em teatro na França, mas ainda está sem um emprego decente. Trabalha num bar. Emprego precário, pois claro. Os patrões, eles próprios ex-estudantes universitários, abriram o negócio (experimental) antes de concluir o curso, mas o projeto comercial prevaleceu sobre o académico. Provavelmente gente socialmente empenhada, valores de esquerda, etc. O curso está por concluir mas o sucesso económico parece assegurado. E hoje comportam-se como qualquer patrão. A Fabiana faz doutoramento em Campinas, mas vai estagiar na Inglaterra, talvez passando algum tempo em Portugal. Do lado de cá, a Dora, é mais uma portuguesa, entre muitos milhares, que está à beira de concluir o doutoramento, sonhando com o Brasil como hipótese de um emprego digno. A Polina é ucraniana e estuda na Polónia e o Marius, seu namorado, é da Lituânia e emigrante na Suécia. Ambos se debatem por um futuro em qualquer país da UE que os acolha e os valorize.
Nestas redes e atmosferas informais, a juventude cultiva valores democráticos e uma convivialidade cada vez mais cosmopolita. Mas nem sempre a consciência social floresce nesses ambientes. São borboletas com dificuldades de voar em clima sombrio e nebuloso. Estes jovens tecem hoje o futuro de uma sociedade, de um modelo de emprego fundado em fluxos transnacionais, onde elevadas qualificações se conjugam com uma precariedade estrutural. Quando se aperceberem que o sistema os instrumentaliza para alimentar uma lógica económica cada vez mais perversa, exploradora e desumana, talvez novas metamorfoses possam ocorrer e os voos dispersos de borboleta possam reverter-se, de novo, na força gigantesca da rebelião coletiva.