Ao subir no elevador até ao 13.º andar, senti-me num cenário próprio da era de Estaline ou Brejnev.
As marcas dos acontecimentos de há cerca de um ano na Praça Maidan são ainda visíveis na capital da Ucrânia. Mas se é fácil notar os efeitos do passado recente, o legado de setenta anos de regime soviético (1922-1991) continua igualmente bem vivo no quotidiano dos ucranianos, embora à mistura com as tendências alucinantes do mundo globalizado do século XXI.
Um “minibus” mais ou menos oficial levou-nos do aeroporto até um daqueles bairros periféricos de construção retilínea, típica do período estalinista e hoje em processo de degradação. Enquanto aguardamos o encontro com o nosso contacto, ocorre o primeiro sobressalto: de mochila às costas e com a mala de viagem ao lado (ainda com a etiqueta da Air France), logo senti um pequeno encosto. Ao virar-me, reparei que um jovem apanhava do chão o que me pareceu ser um rolo de notas de 100 dólares. Como não falo russo nem ucraniano foi a minha companheira que argumentou e por certo travou um desenlace que poderia ter sido grave. O gesto do jovem, bem vestido, pretendia simular generosidade, já que me interpelou perguntando se aquele dinheiro era meu… mas, como de imediato ficou claro, tratava-se naturalmente de uma manobra de diversão de um pequeno grupo de meliantes para apanhar mais um turista tolo ou distraído.
Passado o susto, seguimos por caminhos esconsos nos acessos ao bairro. A lama cola-se aos carros ao ponto de esconder por completo as matrículas. Suponho que seja proibido, mas não importa, porque o cenário revela um padrão. Ao subir no elevador até ao 13.º andar com a nossa anfitriã, senti-me num cenário próprio da era de Estaline ou Brejnev. Os solavancos, a dimensão ampla, o chão sujo, a escassa iluminação, o intercomunicador do tempo da II Guerra e todo o ambiente na entrada daquele edifício me conduziu ao passado. Fragmentos de um mundo, onde, segundo algumas opiniões, “apesar de tudo, as coisas funcionavam” (ou pareciam funcionar). Muita gente ainda recorda que naquela época a vida era mais previsível e havia menos corrupção (ou estava mais escondida?). Porém, o outro lado da aparente segurança – isso também não foi esquecido – era o excesso de zero de funcionários e o medo instalado em cada família, em cada apartamento destes mesmos prédios, porque as paredes tinham ouvidos e uma conversa que levantasse suspeitas podia resultar no desaparecimento silencioso da família inteira. Nos tempos do Gulag o terror pesava nos dias seguintes em todo o bairro, com a substituição repentina de vizinhos e as trocas de olhares silenciados pelo medo coletivo. Ninguém dizia nada. Os testemunhos de alguns residentes mais idosos, com quem mais tarde contactei, confirmaram-no. Mas ao subir neste elevador degradado, tais relatos misturam-se com a memória da literatura de Kravchenko e Soljenitsin, que nos legaram os primeiros testemunhos do que era realmente o “paraíso socialista” e o mundo soviético.
A Praça Maidan está agora limpa de destroços da violência recente. Na mesma subida onde os disparos de alegados mercenários ceifaram cerca de cem vidas num único dia, está exposto um memorial dedicado às vítimas. Nele se alinham os rostos daqueles jovens, a preto e branco, por entre cravos vermelhos, numa simplicidade tocante. O largo principal está decorado com centenas de velas acesas, desenhando o símbolo da bandeira nacional do país e exibindo fotos gigantes dos momentos mais intensos da “revolução do Maidan”. Porém, o clima de consternação não deixa de albergar o oportunismo de alguns, que tentam aproveitar-se da solenidade para angariar “apoio” a um suposto familiar doente ou vítima dos ataques atribuídos a Putin. Uma amiga assumidamente nacionalista interpela um dos jovens que se passeiam com caixinhas improvisadas, penduradas ao pescoço, para o peditório de apoio às famílias das imaginárias vítimas: “mostra-me a identificação!” A seguir faz telefonemas, dirige-se à polícia: “que vergonha, tenho aqui visitantes da Europa a assistir a este oportunismo. O que faz a polícia?”… O certo é que, depois de muita insistência, os militares de serviço foram identificar os suspeitos, vendo-se, na sequência, alguns a esgueirarem-se sorrateiros. Pode ser uma reação inócua, mas são estes gestos que, aqui ou noutro lugar, ajudam a construir a cidadania democrática.
O comboio modelo soviético onde viajei entre Chercassy e Odessa parece sugerir que o tempo parou nos anos cinquenta do século passado. Carruagens-cama com quatro lugares em cada divisão, equipamentos asseados, ambiente bem aquecido, lençóis e serviço de chá assegurados pela funcionária (uma em cada carruagem), é mais uma peça “intacta” do período soviético. Porém, tanto na tecnologia como no modo de funcionamento, este fragmento de “socialismo” também me fez viajar no tempo até ao Portugal profundo do período salazarista. Lá como cá, as rotinas da época escondiam a violência por detrás da fachada. O casal que nos acompanhou numa parte do percurso contou histórias, falou de política (um ponto em que certamente as coisas mudaram muito). Mostraram-se críticos de Putin e da política da Rússia, embora o homem (cerca de 40 anos, operário da construção civil) trabalhe em Moscovo, onde o salário é melhor. Na Rússia, garantiu-nos, nunca revela a sua opinião sobre tais matérias. Parece ser uma tradição desta linha férrea: viagens longas durante a noite podem suscitar todo o tipo de conversas nos encontros casuais entre passageiros. Tal como entram, saem, cumprimentando-se, sem sequer revelarem os nomes.
Chegados a Odessa, o nevão revelou-se bem mais intenso do que esperávamos. Mas o espírito natalício conjugado com o humor típico dos “odessitas” ganham outro colorido no fundo branco das amplas avenidas da cidade, e até o caos do trânsito no último dia do ano é encarado com um sorriso condescendente.