O trabalho e os seus direitos são parte indispensável de um processo de desenvolvimento económico e político numa sociedade democrática. Não há justiça social sem dignidade humana em ação, concretizada todos os dias na vida concreta de cada cidadão, das famílias, do coletivo da sociedade. Por outro lado, um sistema de proteção social moderno e justo não é exequível sem emprego digno e sem um sistema público, universal e solidário de Segurança Social, cuja existência depende, inexoravelmente, do emprego e da valorização que se dá ao trabalho.
Há duas semanas, neste espaço, deixei tópicos pontuais entretanto já mais conhecidos, sobre o ataque (ardiloso e cobarde) que está em curso ao sistema de Proteção Social e à Segurança Social. Um significativo volume de fundos europeus está destinado a mudanças estruturais que conduzam a um recuo da cidadania social – criada com o 25 de Abril e onde direitos de proteção, como o subsídio de desemprego ou o RSI, pertencem às pessoas – para um sistema de caridadezinha assistencialista em que os valores correspondentes a esses direitos são entregues às Organizações Não Governamentais (IPSS influentes, fundações, etc.), que depois farão a sua gestão financeira e política e os distribuirão “solidariamente” pelos desprotegidos e pelos pobres, a troco da sua submissão a certos requisitos.
Com o sistema de Proteção Social e a Segurança Social enfraquecidos pelas políticas de austeridade, intensifica-se a propaganda da trapaça de que “os mercados também tratarão do risco na velhice”. Imagine-se a proteção que teriam os reformados portugueses, se os seus descontos de toda uma vida ativa tivessem sido entregues aos operadores do mercado BES/GES, BPP, BPN e quejandos.
Os mercados jamais tratarão dos riscos na velhice do comum dos cidadãos, como também não tratam dos riscos dos trabalhadores no ativo. A diminuição do emprego e o abaixamento da sua qualidade, o desemprego, a colocação de indivíduos em situações de inatividade, as precariedades, as ruturas e disfunções de condições de trabalho em função da geração a que se pertence, a utilização imoral de “mercados de trabalho” desprotegidos, a brutal transferência de riqueza e de poder do fator trabalho para o fator capital, tudo isto, feito debaixo dos objetivos e imposições dos mercados, gera uma imensidão de riscos, de inseguranças, de instabilidades no trabalho e na vida das pessoas em geral, e depaupera a Segurança Social.
A convergência da velha e retrógrada conceção de que o Estado se deve afastar das relações laborais para imperar a vontade das partes, como se elas estivessem em pé de igualdade no estabelecimento da relação, com uma perspetiva pretensamente pós-moderna – que os paladinos dos “mercados” também já vão referindo quando a primeira tese se esgota – em que o grande anseio dos trabalhadores é a “libertação das dependências da contratualização” não pode ser o “novo” caminho. Isto aniquila os valores do trabalho, as condições para a Segurança Social, bem como a eficácia de qualquer programa de combate às desigualdades, à exclusão social e à pobreza.
É cínico colocar a inatividade, o desemprego, as condições que impõem o abaixamento da qualidade do emprego, as precariedades como decorrências de um processo de libertação dos trabalhadores que há de ser conseguido pelo individualismo “responsabilizador” e por uma espécie de “agencialização” de cada trabalhador. Urge o combate a este vírus. Se não houver uma forte mobilização dos trabalhadores e da sociedade, ele pode estar a infiltrar-se no Largo do Rato, para depois se instalar em São Bento.
Se queremos um efetivo novo ciclo político – que as recentes mensagens do Primeiro-ministro e do Presidente da República procuram sintonizadamente bloquear desde já – há que desenvolver-se, com acutilância, combate a soluções de “trabalho semiescravo” tipo “Contratos Emprego-Inserção” e um debate ofensivo que afirme o trabalho digno e a defesa da Segurança Social, os direitos laborais e sindicais fundamentais, que reponha e revitalize a contratação coletiva, pois apesar das dependências que transporta, ainda será, por muito tempo, libertadora e fator de desenvolvimento.