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23-10-2014        Público

O futebol sempre foi um jogo aparentemente simples. Jogado com os pés, duas equipas de onze jogadores disputam uma bola em conformidade com dezassete regras. Ganha o jogo quem introduzir mais vezes a bola na baliza adversária. Assim descrito, o futebol não apresenta transcendência nenhuma. Baseando-se nessa simplicidade, bem como em valores de ética desportiva e fair-play, os responsáveis pela gestão do futebol sempre proclamaram a modalidade como apolítica.

Vem isto a propósito dos incidentes ocorridos no jogo de qualificação para o Campeonato da Europa 2016, entre a Sérvia e a Albânia. Próximo do intervalo, um drone com a bandeira da “Grande Albânia” sobrevoou o relvado e o caos instalou-se com invasão de campo e agressões físicas, o que levou à suspensão do jogo. Referindo-se aos incidentes, o presidente da UEFA, Michel Platini, afirmou estar muito triste com o sucedido, porque “o jogo não deve ser confundido com política”, enquanto o presidente da FIFA, Joseph Blatter, argumentou dizendo que o “futebol jamais deverá ser usado para mensagens políticas”.

A história do futebol está cheia de episódios semelhantes ao ocorrido na Sérvia. Logo em 1934, na segunda edição do campeonato do mundo, disputado em Itália, Mussolini utilizou a seleção transalpina para fazer a apologia do fascismo. Em 1937, em Espanha, perante o avanço de Franco, vários jogadores bascos desertaram dos seus clubes e formaram uma equipa pretensamente representativa do País Basco, com o objetivo de disputarem vários jogos internacionais e assim recolherem fundos e chamarem a atenção para a sua causa. Em 1958, trinta e dois jogadores de origem argelina abandonaram a França e os clubes em que jogavam e constituíram a “seleção” da Frente de Libertação Nacional da Argélia. Em 1969, numa sequência de jogos entre El Salvador e as Honduras, a hostilidade entre os dois países resultou numa guerra de quatro dias que vitimou cerca de 6000 pessoas. Nesse mesmo ano, em Portugal, a final da Taça no Estádio Nacional foi convertida em cenário de contestação ao Estado Novo por parte da Académica de Coimbra e seus adeptos. Em 1986, quando a Argentina eliminou a Inglaterra no Mundial do México, os dois golos de Maradona tiveram o sabor da vingança pela derrota na guerra das Malvinas. Em 1990, incidentes no jogo entre o Dínamo de Zagreb e o Estrela Vermelha de Belgrado, os clubes mais representativos da Croácia e da Sérvia, constituem simbolicamente o inicio da guerra da independência da Croácia.

Estes são alguns episódios que mostram que o futebol mantém uma íntima relação com a política. Cientes desta “intimidade”, a UEFA, já nesta época de 2014/15, em face de vários cenários de tensão política e militar, determinou que não se realizassem jogos das competições europeias em território israelita e condicionou o sorteio para que clubes ucranianos e russos não se encontrassem. Também para a qualificação do Euro 2016 o sorteio foi condicionado para que Arménia e Azerbeijão, bem como Espanha e Gibraltar, não jogassem entre si.

Não está em causa a realização do jogo Sérvia/Albânia por ser classificado de “alto risco”. Se assim fosse muitos outros jogos não se realizariam porque a rivalidade e a tensão que lhes estão associadas também os classificam como tal. O que está em causa é a afirmação recorrente de que futebol e política não têm qualquer ligação, quando a realidade revela o contrário. O paradoxo no discurso dos responsáveis máximos do futebol é a insistência, apesar de todas as evidências, na ausência da expressão política do jogo, como se este fosse um universo à parte imune à realidade circundante.

Retirar a expressão política do futebol é retirar-lhe uma das componentes que lhe dão sentido. Importa recordar que nos primórdios do movimento olímpico, o barão de Coubertain entendeu que o desporto tinha uma importante função política, nomeadamente ao nível diplomático de promoção da paz internacional. Esperando-se que o desporto condicionasse positivamente a política, dificilmente se supunha que a interação ocorresse em sentido contrário, ou seja, que fosse a política a condicionar negativamente o desporto. No entanto, tendo em conta a globalização da competição desportiva e o consequente encontro de equipas que representam Estados-nações, seria inevitável não haver uma dimensão política a mediar esta forma de relacionamento internacional.

No futebol, os jogadores, clubes e equipas nacionais são representações de comunidades, regiões e países, tornando-se isso evidente a partir do momento em que se coloca um emblema ao peito, se envergam determinadas cores e se canta um hino. Nesses momentos não são apenas as equipas que estão em causa, mas também as comunidades e nações. Por isso, não se joga apenas por jogar, joga-se em representação de alguém, contra adversários construídos e reconstruídos em contextos sociais específicos, reproduzindo-se identidades e políticas.

O futebol é efetivamente um jogo simples, complexificado pelas múltiplas expressões sociais que lhe dão consistência. Afirmar que nada tem a ver com política, é o mesmo que afirmar que o futebol nada tem a ver com economia ou cultura, retirando-lhe assim a essência.


 
 
pessoas
Carlos Nolasco



 
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política    futebol    nacionalismos