Vencedores e vencidos do PREC não esqueceram nem perdoaram. Mas alguns foram ficando mais iguais.
Após a conclusão de um processo inédito de Primárias no seio do PS, vale a pena ensaiar uma breve “genealogia” da esquerda. Sem esquecer a sua matriz ideológica comum, para uma reflexão sobre as dificuldades de entendimento entre as esquerdas, importa conjugar a questão programática com o problema interno das lideranças e do poder, que ao longo de quase dois séculos tantas desavenças provocou.
O Partido Comunista, o Partido Socialista e o Bloco de Esquerda têm no seu “código genético” importantes pontos de contacto com o campo comunista e social-democrata, cuja génese reside no pensamento marxista. Como se sabe, correntes políticas personificadas por Lenine, Trotsky, Estaline, Rosa Luxemburgo ou Bakunin, com todos os seus desdobramentos, cisões e rivalidades, deram lugar a múltiplas controvérsias onde, ao lado do “debate de ideias”, as disputas, traições e vaidades pessoais deixaram pelo caminho milhares de vítimas. Com a denúncia do “gulag” (por via de testemunhos dramáticos de dissidentes da ex-URSS como Kravchenko e Soljenitsin) e a sua disseminação no Ocidente, surgiram novas ruturas no seio dos movimentos socialista e comunista, numa altura em que o reformismo social-democrata, o “socialismo democrático” e a democracia liberal ganhavam adeptos à custa do combate ao estalinismo e do triunfo do Estado providência na Europa.
Também em Portugal essas divisões se acentuaram na década de 1960 e ganharam expressão nos inúmeros grupos que vieram à luz do dia em 1974 (PCs M-Ls, MRPP, LCI, MES, etc.). Nesse contexto, o PS de Mário Soares ganhou a batalha decisiva da democracia e ocupou um lugar-charneira na sua relação com a restante esquerda, demarcando-se da esquerda radical (ou ortodoxa) com base na defesa do pluralismo de opinião, e fazendo da “dissensão” e da “democracia interna” a sua própria força-motriz… Mas o atual PS cortou com isso em benefício de uma unidade corporativista fundada nos interesses instalados, mais do que nos princípios éticos e republicanos do passado. A dissidência Soares-Cunhal, que começou ainda no seio do PCP nos anos sessenta, reverteu-se no pós-25 de Abril numa clivagem brutal, forjada no radicalismo do PREC. Com as paixões políticas ao rubro – o PS, de um lado, o PCP e a extrema-esquerda, do outro –, dirigentes e militantes faziam uso da linguagem vanguardista e das experiências de solidariedade e democracia participativa, para camuflar múltiplas vinganças, oportunismos e ódios pessoais.
Vencedores e vencidos do PREC não esqueceram nem perdoaram. Mas alguns foram ficando mais iguais. Apesar das suas inegáveis diferenças no plano programático e das conceções de democracia, entre PS e PCP há cada vez mais semelhanças no seu modo de funcionamento interno. Há quarenta anos, o campo sindical materializou a divisão PS-PC de modo especialmente dramático, agudizando ressentimentos recíprocos à medida que o terreno do sindicalismo se foi tornando o último bastião de influência política dos “derrotados” do 25 de novembro. Não nos esqueçamos que a UGT foi criada para travar a CGTP e a influência do PC. É claro que na vida prática, dentro ou fora das instituições (no Parlamento, nas autarquias, nas empresas ou nos sindicatos, onde militantes destes dois partidos convivem diariamente), essas clivagens são muitas vezes ultrapassadas pela força das coisas e pelos interesses imediatos que estão em jogo. Mas, mesmo quando é contrariada pontualmente, por razões pragmáticas, a rivalidade política cavou muros intransponíveis. O discurso perdeu conteúdo ideológico mas reforçou os seus efeitos de plasticidade junto aos “fiéis”, ou seja, a diabolização do outro é o principal condimento de fidelização de cada “facção” (ou base eleitoral).
Sabemos bem que a sociedade mudou e passou o tempo das grandes ideologias políticas. Porém, partidos e movimentos precisam de ideologia como de pão para a boca, sobretudo se por ideologia entendermos um novo pensamento que abra caminho a novos projetos emancipatórios e desenvolvimentistas. Nos últimos anos, houve no nosso país iniciativas pontuais indiciadoras de vontade renovadora, se bem que, até agora, com resultados pífios. A candidatura de Manuel Alegre (em 2006) à revelia do PS, o crescimento do BE e alguns sinais de abertura, mais recentemente o Congresso Democrático das Alternativas, o Fórum das Esquerdas, o Movimento 3D, a criação do Partido Livre, o resultado obtido nas eleições europeias pelo Partido da Terra (sob a influência de Marinho e Pinto), e mesmo a recente rutura do Fórum Manifesto, que saiu do Bloco, são indicadores de insatisfação e um desejo difuso de revitalização das esquerdas, na linha aliás de iniciativas recentes noutros países europeus (como em Espanha e na Grécia).
Os legados ideológicos do passado continuam a ser importantes, mas a sua renovação é urgente. Precisamos de algum modelo de referência que nos ajude a romper com o statu quo a nível nacional e europeu. Social-democracia, eco-socialismo ou socialismo democrático e mesmo a ideia de comunismo continuam a ser campos de reflexão a considerar para uma reatualização do pensamento de esquerda. Mas mais do que de pensamento, a esquerda precisa de bons exemplos de liderança, transparência e formas comunicacionais inovadoras. As atuais ou futuras plataformas político-partidárias terão de “retirar do armário” as velhas referências doutrinárias e reatualizá-las à luz da nova realidade sociopolítica. Sem esquecer que hoje as gerações mais jovens – e os cidadãos em geral – exigem novos modelos de organização, de representação e de participação (onde a cidadania e o ativismo virtual-real tende a ocupar um lugar de relevo). Não se espera, naturalmente, qualquer aproximação de posições entre PS, PC e BE, mas se continuarem “blindados” face a essa exigência poderão vir a ocorrer novos arranjos internos, ruturas e canais de diálogo que abram caminho aos atores políticos do futuro. Enquanto isso não acontece, o provável regresso do PS ao poder poderá abrir-se a um novo projeto de esquerda ou será apenas um dejà vu?