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22-08-2014        Diário de Notícias

Atores, futebolistas, gente do jet set, apresentadores de televisão unem-se este verão no gesto de se submeter a um súbito duche gelado. Fazem questão de publicitar esse gesto bizarro na mais pública das praças - a internet - e fazem-no para "chamar a atenção" para a esclerose lateral amiotrófica e para tornar conhecido da sociedade o seu donativo a instituições empenhadas no combate à doença e convocar outros a fazer o mesmo.

As campanhas de solidariedade virtual, feitas de uma ética light, são uma marca deste tempo. Não têm, em princípio, nada de mal. Mas, sendo virtuais e simbólicas, não comprometem realmente os seus protagonistas senão com um fugaz apoio a sofredores quase sempre sem rosto, sem nome, sem proximidade que os torne interpeladores a sério da vida de quem com eles se diz solidário na internet. A carga de compromisso que elas geram é pouco mais densa do que a de um like num post de Facebook. Cada uma das figuras públicas envolvidas dirá - e ninguém terá a arrogância de as desmentir - que dá a cara por uma razão humanitária e que a atenção às vítimas, a quem sofre, é algo sem cor política, sem condição social e económica, sem crença religiosa, sem raça e sem sexo. E que é justamente por isso que dão a cara.

A disponibilidade, seja de quem for, para ajudar a combater o sofrimento alheio não se discute. O que, sim, merece discussão é essa alegada superioridade das chamadas "causas humanitárias" relativamente a outras causas de mobilização social. A construção da alegada superioridade do humanitário sobre o político assenta na qualificação dessas causas como neutras, por contraste com problemas cujo diagnóstico e cujas soluções assumidamente o não são. O humanitarismo é consensual porque se declara politicamente neutro e porque, ao colocar o centro na condição de vítima, substitui a escolha política pela técnica terapêutica. Tudo neutro, tudo técnico, tudo só generoso sem mais implicações.

Essa neutralidade, assim construída, dá aliás imenso jeito: a escolha do campo da neutralidade em detrimento do campo das escolhas contrastadas e polémicas faz parte dos cânones da gestão da imagem de boa parte dos rostos destas campanhas. O que não cause mossa à popularidade unânime é dito como sendo nobre, o que obrigue a escolhas que dividem é tido como inconveniente e fica para "os políticos".

Sejamos claros: uma sociedade que ignora o imenso sofrimento que a esclerose lateral amiotrófica provoca é uma sociedade alheada de realidades essenciais e aberta à crueldade. Mas uma sociedade que não se bate, com toda a energia e com toda a determinação, pela qualificação do seu serviço de saúde - em equipamentos, em pessoal especializado, em meios materiais - de modo a que todos, sem exceção, possam ter condições de base iguais para travar essa e outras doenças, é uma sociedade com vistas curtas, incapaz de uma estratégia eficaz e justa, em que a generosidade episódica de alguns será sempre uma gota de água que se esfuma na areia sem deixar rasto.

A generosidade é sempre bem-vinda. Mas enquanto ela for complacente com um sistema fiscal iníquo e com um desinvestimento na saúde como bem público, não haverá campanhas de figuras públicas que nos valha. A disponibilidade de atores, futebolistas, gente do jet set, apresentadores de televisão para, aceitando os riscos de desagradar a alguns dos seus fãs, ir além do gesto convenientemente humanitário e fazer campanha contra o verdadeiro duche gelado que é a realidade de um país injusto e onde cada vez há menos capacidades de todos poderem lutar de igual modo contra a doença soa a utopia. Porque será?


 
 
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José Manuel Pureza