A LP da CP já era. Não, esta crónica não é sobre discos de vinil nem sobre comboios. É sobre uma organização internacional e sobre o sentido da sua existência.
A Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) nasceu na encruzilhada de duas visões e de duas agendas. Uma foi a agenda da nostalgia lusotropicalista. Para ela o colonialismo português foi sempre essencialmente benigno e mais que tudo gerou a miscigenação boazinha de povos e de culturas. Esse suposto excecionalismo histórico-cultural da relação de Portugal com as suas ex-colónias seria, para esta visão, o ativo mais precioso para a negociação da posição de Portugal na Europa. Em síntese, para essa agenda, a CPLP seria uma espécie de sucedâneo das colónias expurgado de colonização formal. A segunda agenda que esteve na génese da CPLP foi a da hegemonia brasileira em crescendo. Animada por outras elites com outra história, esta agenda partilhou com a primeira a noção de excecionalismo do legado do colonialismo português. Mas enquanto a primeira era um recurso defensivo para Portugal, esta era um recurso afirmativo para o Brasil. Não servia para negociar para Portugal outras coisas na Europa mas para afirmar o Brasil como parceiro privilegiado dos países africanos.
A língua portuguesa foi um traço de identidade de ambas as agendas. O que mostra a ambivalência da língua como foco das políticas externas dos Estados que foram ou aspiram a ser dominantes num espaço internacional. Língua de negócios para a construção civil ou para a consultoria jurídica, o Português foi também a língua de desenho de imaginários emancipadores por Mia Couto, Pepetela, Valter Hugo Mãe ou Rubem Fonseca. Língua do império, o Português foi também língua de resistência ao império.
Uma organização internacional é sempre mais do que os seus propósitos fundadores. Os declarados e os outros. Uma organização alicerçada sobre a ambivalência do papel histórico da língua portuguesa tinha que ter necessariamente como natureza a abertura ao desempenho de diferentes papéis. Tanto o de ser trampolim para novos mercados como o de defender as populações civis da Guiné Bissau contra as teias destruidoras dos tubarões do narcotráfico internacional, por exemplo.
Chegado aqui, quero dizer com clareza: prefiro mil vezes essa pluralidade em aberto à clareza fechada da agenda que nasceu na cimeira de Dili. Ao decidir pela inclusão da petro-ditadura de Obiang, a CPLP aceitou abandonar a sua matriz fundadora - e a diversidade de lógicas que a animavam – e tornar-se noutra coisa totalmente distinta. O critério que permitiu esta inaceitável adesão da Guiné Equatorial torna perfeitamente natural que o Canadá, a Bélgica ou a Argentina, por exemplo, sejam um dia aceites como membros desta tão peculiar comunidade de países ‘de língua portuguesa’. Com duas diferenças: primeira, nenhum deles pedirá para ser membro porque não tem nenhuma necessidade de lavar a sua imagem internacional; segunda, em qualquer deles há incomensuravelmente mais gente que fala português do que na Guiné Equatorial.
Não vejo mal nenhum na existência de uma organização que una Portugal, a Argentina, o Canadá e a Bélgica, claro. Mas para que serviria essa estranha união? E para que serve a estranha união entre a Guiné Equatorial e qualquer dos países fundadores da CPLP? Há uma resposta para esta pergunta e é a pior de todas: para ser biombo e disfarçar a barbárie. Foi esse o mais inquietante sinal que a CPLP deu para fora e para dentro na cimeira de Dili: ela aceita ser uma organização-biombo de ditaduras e de regimes despóticos. Sobre isso deixou de haver qualquer ambivalência.