Da forma hollywoodesca de contar o mundo faz parte a estratégia de confinar o mal a uns patifes cheios de avidez ou de perversidade, responsáveis isolados por situações de afundamento moral ou de violação dos direitos das pessoas. Nesses filmes, a ordem e os seus mecanismos apresentam invariavelmente uma capacidade de auto-regneração quase ilimitada que se encarrega de depurar os maus e de devolver a normalidade a um quotidiano por eles ameaçado.
A sucessão de falcatruas e de desmandos no sistema bancário português nos últimos anos faz perguntar se são uns poucos desviantes que espezinham o que de outra forma seria uma ordem que funcionaria bem ou seu é o próprio sistema que tem uma lógica baseada na voragem ilimitada e é desordenado por natureza. Por outras palavras, os casos do BPN, do BPP e agora do BES mostram exatamente o quê sobre o capitalismo na era do primado da finança: que ele descamba quando a regulação não funciona ou que não há mesmo regulação que o impeça de descambar?
Dos sobreiros da Vargem Fresca no caso Portucale até aos submarinos, das parcerias público-privado mais leoninas e ruinosas para o erário público na saúde até aos swaps, da implantação de sedes de empresas do grupo em paraísos fiscais como o Luxemburgo até à assunção de fuga ao fisco durante anos consecutivos pelo seu dirigente máximo (a que uma amnistia fiscal desenhada à medida pelo legislador pôs termo) – a tudo isso o BES aparece indesmentivelmente associado. Tal foi o rosário de trapalhadas e de histórias mal contadas que brada aos céus a quietude de comentadores e editorialistas sempre tão lestos na atribuição à “classe política” ou aos dirigentes sindicais da responsabilidade pela ruína do país
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Dir-se-ia que a liberdade de mercado é mesmo assim, que o seu risco não para às portas de ninguém. Mas o certo é que não é nada disso que causa o afundamento do Grupo Espírito Santo. Porque não é risco de mercado o não reporte de 1.3 mil milhões de euros de passivos nas contas de uma holding. Nem é risco de mercado que uma filial pratique uma política de crédito cujo resultado são 5.7 mil milhões de euros emprestados sem saber para que fins nem a quem. Não, não é risco de mercado, é mesmo jogo de casino com dinheiro alheio.
Repito para que não haja dúvidas: com dinheiro alheio. O Banco Espírito Santo é um dos grandes responsáveis pelo gigantismo da dívida externa do país que motivou a intervenção da troika – uma dívida na sua esmagadora maioria privada e cujo resgate pelo Estado passou para todos nós, contribuintes, o ónus do respetivo pagamento em perda de salários, em perda de pensões ou em perda de qualidade dos serviços públicos de saúde de que se alimenta o crescimento do negócio de saúde do Grupo Espírito Santo. As tantas benesses do amigo Estado – a reprivatização, as PPP, as amnistias fiscais, a inação diante de desmandos sucessivos alimentada pelo vai-vem entre direção de empresas do grupo e cargos parlamentares ou governamentais – são um retrato da democracia que temos.
Tresanda a BPN, Parte II. E a pergunta tem pois que ser: o que é que aprendemos com o BPN? Deveríamos ter aprendido duas coisas. Primeira, que um setor bancário liberalizado gera e desenvolve práticas de poder, de promiscuidade e de contorno da lei que lhe dão uma força crescente. Segunda, que uma regulação a sério de um sector tão crucial implica presença do Estado por via acionista, única forma de conter verdadeiramente a deriva de destruição de uma finança sem rei nem roque.
Quando um destes dias nos vierem com a inevitabilidade de injetar capitais públicos no BES para controlar o risco sistémico, valia a pena lembrar tudo isto.