Há trinta anos chamavam-lhes Mujahedin ou combatentes da liberdade, no Afeganistão. Agora afivelam-lhes o estigma de jihadismo ou fundamentalismo islâmico, como se antes – quando eram úteis às estratégias de dividir para reinar dos financiadores ocidentais e dos seus aliados mais espúrios – tivessem sido outra coisa qualquer. Na verdade, o jihadismo do Exército Islâmico do Iraque e do Levante é apenas o resultado mais recente do longo conúbio entre a gestão imperial do médio oriente pelos sucessivos inquilinos da Casa Branca e os sheiks das petro-ditaduras do Golfo.
Quem manda no mundo nunca hesitou em servir-se de atores assim para os seus propósitos, ao mesmo tempo que sobre eles lançou a mais inflamada das condenações. O uso da irmandade Muçulmana contra Nasser, a recuperação do Hamas contra Arafat por Israel ou a criação da Al-Qaeda contra os soviéticos no Afeganistão são ilustrativos episódios anteriores de uma novela que tem agora no Exército Islâmico do Iraque e do Levante o seu ator em destaque.
A instrumentalização de necessidades sociais profundas é o seu ADN. De há três décadas a esta parte, o jihadismo tornou-se no dispositivo de inclusão privilegiado de milhões de pessoas situadas num lumpen-proletariado totalmente excluído de direitos por monarquias cleptocráticas no mundo árabe. São massas humanas cuja pobreza as torna totalmente disponíveis para uma lealdade cega para com quem lhes dê um sentido para uma vida privada dele pela acumulação de marginalizações. Agora é assim no Iraque. Sem surpresa: num país destruído por uma guerra sem quartel que a intervenção ocidental deixou como principal legado, são seis milhões de pessoas que vivem nos limites da miséria e para os quais não há nenhum horizonte que retire razão à guerra como modo de vida. É aí que está boa parte da comunidade sunita, a quem o Governo de Al Maliki excluiu e agrediu como contra-face das benesses dadas aos seus.
Como no Afeganistão, na Líbia ou na Síria, é a estes despojados que é dado prosseguir o que as invasões externas deixaram apenas começado. Trata-se de uma espécie de legião estrangeira do integrismo islâmico que, como todos os grupos de mercenários, não faz aceção de aliados: lutou ao lado da NATO na Líbia, juntou-se aos que cumpriram a estratégia anti-Assad na Síria e é agora ponta de lança na guerra anti-xiita no Iraque. São os mesmos, viajam de terra para terra, em nome de uma bandeira difusa que lhes dá pão e sentido para existir.
Dúplices parecem ser os que deles se servem: fazem aliança com o jihadismo contra Assad na Síria, fazem dele seu inimigo no Iraque. Talvez só na aparência haja duplicidade, no entanto. Obama usou na Síria e na Líbia a mesma tática de estímulo das divisões sectárias que o seu antecessor iniciara criminosamente no Iraque. Agora, o efeito das táticas de um e de outro rebenta às portas de Bagdad. E subitamente ficam criadas as condições para cumprir o plano de federalização sectária do Iraque, aprovado pelo Senado em 2007 sob iniciativa do atual vice-presidente Joe Biden e do republicano Brownback. A divisão do Iraque, começada por Bush, será consumada por Obama e somar-se-á ao desmantelamento da Síria para impor o redesenho das fronteiras de todo o Médio Oriente como afinal desejavam os neocons que empurraram Bush para a irresponsável invasão do Iraque em 2003.
Entretanto ouviremos os donos do mundo dizer do jihadismo que ele é o mal absoluto. Quanto pior disserem maiores serão as suas cumplicidades. Afinal de contas, os donos do mundo há muito nos habituaram a dar a mão ao diabo para que os seus negócios fiquem a salvo. Que importam um milhões de iraquianos, de sírios e de líbios pobres diante da garantia de que as moedas continuarão a tilintar?