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13-02-2011        Site Angelus Novus

Elsa Lechner doutorou-se em Antropologia Social pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, e é actualmente co-coordenadora do núcleo das Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz, do Centro de Estudos Sociais. Na Angelus Novus publicou recentemente, na série de Antropologia da Biblioteca Mínima, dirigida por Luís Quintais, o volume Migração e Conflito.

Sobre as temáticas do livro, e na sequência da entrevista com outro autor da Biblioteca Mínima, Daniel Melo, ouvimos Elsa Lechner.

P. O tratado de Maastricht, de 1992, ao criar a «cidadania da União Europeia» instituiu, entre outras coisas, a livre circulação de pessoas nesse espaço. Ao fazê-lo, de certo modo recodificou, na UE, a noção de «migrante», que passou a ser aplicada àqueles que vêm de fora da UE. Ou seja, no mesmo momento em que «desdramatizou» a circulação de pessoas dentro do espaço europeu, deslocou a «dramatização» conatural ao acto de migrar para os que vêm de fora, como se este elemento dramático não pudesse deixar de estar presente quando falamos de migrações, mesmo se ele vai sendo objecto de recodificações como esta. Mas, em rigor, e fazendo um pouco o papel de advogado do diabo, podia ser de outra maneira? Um espaço desta dimensão no qual se advoga e pratica a «livre circulação de pessoas» não é por isso submetido a tensões para cuja gestão é necessária toda a energia e atenção? Pode a União Europeia gerir as migrações internas dos cidadãos dos seus 27 membros e ainda abrir-se aos fluxos migratórios do resto do mundo sem exceder a sua capacidade de assimilação e gestão de conflitos?

R. O Tratado de Maastricht de 1992 “acabou” (na letra da Lei) com os tempos dolorosos da «mala de cartão» ao criar a «Cidadania da União Europeia» que instituiu a livre circulação de pessoas oriundas dos países da União. Esses tempos de clandestinidade ficaram na memória de milhões de emigrantes que deram o salto em condições dramáticas nos anos sessenta quando apenas existia o Mercado Comum dos seis países signatários do Tratado de Roma. Hoje, nas fronteiras da União de 27 países europeus basta mostrar um documento de identificação para um português poder entrar. Se um português desempregado se vê obrigado a deslocar-se a Paris ou Hamburgo, por exemplo, para encontrar trabalho, ele ou ela não é legalmente considerado emigrante (embora estrangeiro) mas sim um cidadão europeu à procura de emprego num outro país da EU. Pelo contrário, os trabalhadores de países terceiros precisam de autorização específica para trabalharem e se instalarem no espaço da UE.

Ora, é preciso ter em conta que o acto de migrar e as múltiplas experiências migratórias de sujeitos em carne e osso do presente, do passado e do futuro, na UE como no resto do planeta, comportam dramas inegáveis que devem ser conhecidos e reconhecidos pelos Estados e pelos cidadãos, numa visão de conjunto. Tais dramas convocam a atenção não só de uma visão aproximada, concreta, pessoalizada e sensível dos fenómenos migratórios, mas também deveriam interessar as políticas dos diversos Estados e da comunidade internacional. É certo que a primeira visão pouco coincide com a segunda, mesmo quando existe boa vontade política e esforços militantes de associações e grupos humanitários que trabalham de perto com migrantes. Vejam-se os casos diários de controlo, retenção, e deportação de migrantes nas fronteiras da Europa Fortaleza: essas existências declaradas infames pelas normas de segurança das nações, são marcadas por uma precariedade limite que nos fazer questionar o que é uma vida em espera numa fronteira, entre muros, sem laços de pertença ou mesmo de solidariedade. A política europeia de controlo das migrações parece esquecer, todos os dias, como a circulação de pessoas sempre foi uma constante da história do continente Europeu. A questão das migrações vindas do exterior não se deve conceber pois nos termos meramente judiciais e de policiamento da “capacidade de gestão interna” da União, mas no horizonte de uma abordagem compreensiva que articule as diversas dimensões (histórica, social, política, cultural, de cidadania, ambiental, etc.) dos fenómenos migratórios.

Para tal, é preciso compreender a cartografia da racionalidade contemporânea e a maneira como, no contexto geopolítico mundial, os discursos securitários (de defesa e protecção) desenham fronteiras políticas, sociais, éticas e estéticas entre “nós” e “eles”, assim criando uma representação normativa dos corpos, dos gestos, dos comportamentos e das linguagens que exclui todos os que não entram na norma. Uma multidão à deriva está a viver diariamente situações de extrema violência física e simbólica que são ignoradas, senão desprezadas pelas políticas migratórias de “gestão dos indesejáveis”. Mas tal desconsideração e menosprezo não poderão durar para sempre. As tensões nas fronteiras não são apenas de ordem legal – entre uma massa de gente que visa o norte e uma vigilância territorial que lhes impede a passagem. São também de uma nova ordem de consciência, entre a realidade das vidas precárias, infames, de todos os “Homens sem qualidades” sem direito a lugar de pertença e a dificuldade humana em colocarmo-nos no lugar do outro, em pensar e integrar a alteridade, em reconhecermo-nos todos como potenciais estrangeiros. Estou persuadida que tal tomada de consciência virá a mal se não for atempadamente a bem: como consequência das mudanças climáticas e consequentes movimentos populacionais que vão fugir às cheias, às secas, à fome, à falta de água potável. Esta é uma verdade muito inconveniente e um desafio tão grande para filósofos e cientistas sociais quanto para legisladores. Mas requer uma racionalidade nova que mude as páginas da história de desunião, de preconceito, de conflito entre povos para uma era mais solidária e de sentimento de pertença comum a um mesmo lugar – a terra. Para tal é necessário um real esforço conjunto entre países tradicionalmente divididos, entre culturas e civilizações diferentes. Tem de deixar de ser uma utopia.

Em relação à última parte da pergunta sobre “a [sua] (da UE) capacidade de assimilação e gestão de conflitos”, eu respondo com outras perguntas: em que consiste assimilação e gestão de conflitos? Como se mede a assimilação e o conflito? Não é, à partida, a ideia de assimilação uma barreira à compreensão da complexidade inerente à questão das migrações? Logo, não será a ideia de assimilação uma fonte de conflitos menos visíveis e tangíveis? Pessoalmente penso que sim, que tal ideia constitui, em si mesma, um muro a ultrapassar conceptual e experiencialmente pelas sociedades e Estados, de forma a ser possível a construção da coesão social. O capítulo do livro dedicado ao conflito tenta justamente dar conta do papel central da falta de reconhecimento (seja da cultura, da dignidade, das identidades e identificações) na origem dos conflitos sociais. E mais: constata que a lógica de fronteiras reais ou simbólicas e de limites excludentes, não só não resolve os problemas eventualmente advindos das migrações “extra-comunitárias” (termo politicamente conotado) como dramatiza ainda mais as suas realidades quotidianas, de ambos os lados das fronteiras. Por isso mesmo, o que se passa na prática é uma verdadeira desumanização das políticas migratórias, e não só na Europa.

Ora, a experiência já provou que qualquer tentativa de assimilação forçada produz um efeito contrário ao procurado, isto é, conduz ao conflito em vez de promover a coesão social e a convivência intercultural. É para facilitar uma integração desejável e mutuamente útil que o RELATÓRIO DA COMISSÃO MUNDIAL SOBRE AS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS recomenda no seu capítulo quarto intitulado «Diversidade e coesão: os migrantes na sociedade»), as políticas operacionais conducentes à prevenção dos conflitos e à promoção da cooperação entre migrantes e países de acolhimento. Por exemplo:

-respeito pelas diferenças culturais (enquanto forem consentâneas com os direitos humanos universais que, bem ou mal, visam defender todas as pessoas);
-transparência dos governos na justificação da admissão de emigrantes (sabemos que muitos ilegais são “tolerados” por razões económicas, por exemplo, assim contradizendo as políticas de fiscalização das fronteiras);
-providenciar à sociedade civil apoio e documentação apropriada sobre migrações, racismo, discriminação;
-protecção contra abusos e práticas de discriminação e de segregação;
-implementar apoios públicos e privados aos migrantes mediante legislação que faculta condições de trabalho, saúde, educação e habitação;
-dotar os representantes do Estado (policia, juízes, agentes de migração, funcionários públicos, pessoal médico) de formação adequada para lidar com a diversidade.

É preciso agir em conjunto a nível mundial mas de uma nova maneira, articulando Norte e Sul, dialogando na diversidade, saindo de velhas estruturas de relacionamento entre países e povos. É um grande desafio!

P. Como vê fenómenos como a «Directiva de Retorno», aprovada pelo Parlamento Europeu, e que cria um novo quadro legal para o repatriamento de imigrantes ilegais, e fenómenos como os que ocorrem por exemplo em França, com repatriamento de cidadãos europeus de etnia cigana? Parece que, pelo menos no segundo caso, a livre circulação de pessoas pressupõe uma preocupante discriminação étnica à partida…

R. Com certeza! A livre circulação de pessoas foi mais facilmente defendida por uma Europa dos/para Europeus de outrora que reage agora na defensiva à circulação mundial de pessoas “outras”. O que se está a passar em França é elucidativo desta contradição histórica: o país da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” sobrepõe aos direitos humanos a nacionalidade, sendo que tal sobreposição se encontra associada de forma evidente à questão étnica, como à religiosa, e mesmo civilizacional. Todas elas tidas como ameaças de terror.

Em França, no dia-a-dia, a igualdade de direitos fundamentais é violada pelo próprio Estado. A nacionalidade prima sobre a humanidade de muitas pessoas que vivem e trabalham no seu território. A liberdade de circulação é negada a muitos, a sua dignidade humana também. Estamos a assistir a um nacionalismo normalizador que vê até em alguns migrantes sobreviventes à triagem do Estado francês, um perigo global comparado a uma doença infecciosa. Trata-se de uma forma de racismo republicano (veja-se a criação de um “Ministério da Identidade Nacional e da Imigração”) e a defesa do “povo europeu” versus a “Europa de um povo” que segue e aplica uma lógica sanitária das políticas migratórias. Ora, tal comparação não é uma novidade histórica: os estrangeiros em tentativa de livre circulação apesar das fronteiras, muros e preconceitos de sempre, foram amiúde vistos como “invasores” portadores de males e contaminações; tal como sempre foram objecto de higienização social. Só a memória curta e uma profunda ignorância explicam o medo e a postura defensiva na definição das políticas de fronteira. E os sentimentos de medo e de rejeição, bem como o sentimento de superioridade ou de exclusividade, estão longe de poder contribuir para a segurança e paz dos países e das populações.

É importante notar que os discursos defensores da Directiva referem a “necessidade de harmonizar a nível comunitário as regras para a detenção e expulsão de imigrantes ilegais mais severas nuns Estados do que noutros” e que os discursos contra referem o “ataque que a medida representa à dignidade da pessoa humana e a hipocrisia dos países ricos face aos países pobres”. Entre um pragmatismo administrativo consensual e a prática do respeito por todos, há um complexo programa civilizacional a preparar, uma vez que a situação actual é insustentável sob todos os pontos de vista (demográfico, económico, cultural, moral). Se cada país sente necessidade de preservar a ordem pública, também é verdade que o mundo tem de encontrar um mecanismo de regulação global capaz de conciliar as leis do mercado e os imperativos da coexistência pacífica entre os vizinhos desta “aldeia global”.

P. Um dos dados mais impressionantes do seu livro é o que informa da contribuição das migrações para a reposição da taxa demográfica: 89% do crescimento da população na Europa entre 1990 e 2000. Isto significa, sem qualquer dúvida, que a Europa não pode deixar de acolher no seu seio populações imigrantes, sob risco de desaparecer demograficamente. Mas significa também que a Europa será multicultural ou não será… Concorda com esta afirmação? Em caso afirmativo, quais as exigências que esta situação nos coloca?

R. Concordo inteiramente com a sua afirmação: «A Europa será multicultural ou não será». Aliás ela já é multicultural mas será ainda mais em breve, à medida que as famílias de imigrantes fazem mais filhos do que as outras.

Quanto à segunda parte da sua pergunta sobre quais as exigências que a multiculturalidade coloca, temos que precisar de que falamos quando falamos de multiculturalismo.

O vocábulo entrou no léxico social e político dos países do hemisfério norte a partir dos anos 1970, acompanhando os debates sobre os efeitos do pós-colonialismo e sobre as sociedades pós-modernas, nomeadamente os EUA. Por um lado, a palavra reveste-se de um sentido descritivo que procura dar conta de fenómenos sociais de coexistência na diversidade cultural (etnias, religiões, grupos de pertença) e, por outro lado, adquire um sentido normativo, prescritivo, de políticas públicas visando tal diversidade. Os modelos teóricos que orientam as reflexões e práticas neste domínio normativo, também estão situados em tempos e lugares específicos da história contemporânea.

Existe o modelo canadiano da “manta de retalhos” (multicultural quilt) de identidades hifenizadas (portuguese-canadian, chinese- canadian, etc.); o modelo dos Estados Unidos da América, chamou-se no passado melting-pot, mas esta metáfora teve vigência nas primeiras décadas do século XX e referia-se a um processo de assimilação em que a diferença se diluía, era amalgamada no todo da identidade nacional, com a ajuda dos chamados programas de americanização. Um mito, enfim. É logo a partir da década de 1940 que começam a surgir as identidades étnicas, abrindo caminho às identidades hifenizadas, sobretudo depois da década de 70. Por exemplo os índios denominam-se Indian-Americans. A sociedade actual nos EUA é simplesmente multicultural. Mosaico (mosaic), saladeira (salad bowl) e orquestra foram metáforas dessa diversidade. Há também quem defenda que agora se devia falar de diversidade cultural, porque é um modelo mais integrador da diferença do que o multiculturalismo onde as comunidades coexistem mas ‘guetoizadas’, onde cada grupo se identifica por uma “identidade de origem” (chicanos, afro-american, haitians, etc.). Na Europa, de forma mais ou menos explicita, o modelo é o da assimilação das minorias mas a diversidade cultural existe na aqui desde os primórdios dos seus movimentos populacionais, tornando-se a questão apenas no século XX, objecto de discussões e políticas intra-Estados.

O que se está a passar desde os anos 1990 no Velho Continente, porém, é que demograficamente os europeus estão a tornar-se minoritários e que tal menoridade confronta culturalmente a experiência histórica que o continente – e mais concretamente os países fundadores da EU- têm de si próprios desde sempre, e muito particularmente desde o século XIX com a construção dos Estados-Nação.

O que a questão demográfica traz hoje para cima da mesa na Europa, é sobretudo uma oportunidade de consciencialização histórica desse abismo construído entre dois mundos (os risos e os pobres, os brancos e os outros) e que se vê ad eternum asfixiada pelo medo da ameaça externa projectado agora nos migrantes de países terceiros. Essa é uma herança da ideia de pertença a um grupo nacional homogéneo com uma só cultura, uma língua única e uniformizada (veja-se o papel central das políticas da língua na construção dos Estados-Nação), uma só religião – ideal que os europeus transportaram para as suas colónias também. Os historiadores referem, a este propósito, um efeito psicológico na emergência do Estado-nação, pois a pertença a tal estrutura confere aos indivíduos segurança e certeza, enquadramento e referência civilizacional. Ora, a confrontação que parece nascer do contacto mais recente, desta vez no próprio território europeu, entre europeus (inférteis, envelhecidos) e populações jovens das suas antigas ex-colónias (bem como face a populações oriundas de novas Geografias de segregação), lança achas à fogueira dos conflitos interculturais, inter-religiosos, etc. E esta é uma questão extremamente complexa!

Assim, as exigências que os novos movimentos populacionais colocam no mapa actual europeu, são de profundo impacto nas tradições e representações históricas locais (coloniais também) dos diversos países que no passado dominaram o mundo mas que ainda hoje não aprenderam a olhar para si próprios como elementos de um todo. Este todo, o planeta dos Homens, não poderá sobreviver sem uma mudança de fundo nas relações entre Estados e populações, mais além dos meros interesses económicos e de dominação cultural ou civilizacional.

P. A «prevenção do conflito» é uma figura tipicamente pedagógica. Duas perguntas, sobre isto: (i) Em seu entender, que tipo de instituições deveriam ser mobilizadas para esta pedagogia, além da escola? (ii) A «prevenção do conflito» em relação ao imigrante não exige, necessariamente, correcção política, ou seja, evitar o estereótipo e o preconceito, reconhecer o Outro e o seu direito ao nome e ao bom nome?

R. Os teóricos da prevenção de conflitos e fazedores de paz, tais como os membros da organização Transcend que cito no livro, trabalham de forma concreta a partir de contextos reais e não hipotéticos de conflito.
Os manuais de resolução de conflitos utilizam a metáfora da medicina (diagnóstico-cura) e formam mediadores de conflitos para trabalhar com os grupos em oposição.

Do que me foi dado conhecer sobre o assunto ao longo da elaboração deste livro, as técnicas de prevenção e de resolução de conflitos são adaptadas a tais contextos concretos e resultam dos tipos de conflito em questão. Nesse sentido dependem, na sua forma e conteúdo, dos sujeitos implicados, do enquadramento geral (político, social, cultural), e particular (situacional, linguístico, de interacção) dos conflitos a prevenir. Na sua manifestação de intenção política para os Estudos para a Paz, Galtung deixa entender que todos os cidadãos do mundo deveriam contribuir para uma vida social preventiva de conflitos. Galtung diz mesmo que o desafio actual é desenvolver a criatividade e imaginação necessárias para encontrar alternativas que transcendam todas as formas de violência. A saída para os horrores da história de conflitos humanos encontra-se assim nas pessoas e não tanto nas instituições. É esta uma utopia concreta que atrai quem tem boas intenções de convivência pacífica, de justiça e coesão social. Mas é legitimo perguntar como podemos imaginar uma sociedade civil capaz de tal proeza, quando os Estados, as políticas e os mercados onde vivemos são os primeiros a fomentar (consciente e inconscientemente) os conflitos? Basta ver os filmes documentários que já foram feitos sobre os migrantes que tentam a Europa, sobre os requerentes de asilo, sobre os centros de retenção no norte de África ou de refúgio na Europa para saber que o que se passa é um verdadeiro horror.

O caso das políticas migratórias é pois bem revelador da necessidade básica de reconhecimento humano de todos. O direito à face vem antes do direito ao nome, e muito antes do bom nome porque ele representa, muito simplesmente, o direito à vida. Quem considere ridículo falar neste grau zero da pertença ao mundo em matéria de migrações, que veja o filme Tanger: le rêve des brûleurs (de Leïka Kilarí) ou La Forteresse (de Fernand Melgar) (entre muitos outros); ou leia o livro de Michel Agier, Le couloir des exilés: être étranger dans un monde commun. Os incrédulos ou cínicos podem ainda fazer uma incursão pelo trabalho de antropólogos e médicos que lidam diariamente com populações migrantes em vários países no norte. As realidades humanas com que nos deparamos em tais contextos dão a cara a uma verdadeira monstruosidade de vivencias que só uma burocracia insensível e uma administração inconsciente podem ignorar.

P. Como vê a situação de acolhimento e integração dos imigrantes em Portugal? O quadro legal, actualmente regido pelo «Plano para a integração dos imigrantes», de 2007, parece-lhe adequado? Os meios que o Estado afecta a esse esforço parecem-lhe os correctos?

R. O “I Plano para a integração dos imigrantes” vigorou de 2007-2009 e colocou Portugal no grupo restrito de países da EU que adoptaram um instrumento de orientação global das políticas públicas para a integração dos imigrantes. Tais políticas foram em 2009 classificadas em 1º lugar pelo Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas e implicaram a acção de 13 Ministérios.

O II Plano entrou em vigor em Agosto de 2010 e manifesta explicitamente o objectivo de assegurar o pleno respeito pelos direitos dos imigrantes, promover a coesão social, a igualdade de oportunidades, favorecer o diálogo intercultural, reconhecendo o papel de todos os parceiros públicos e privados. Os dois planos foram elaborados com o contributo e propostas solicitadas à sociedade civil, como associações de imigrantes, a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial e especialistas que contribuíram para dar sugestões concretas sobre questões como a habitação não segregada, educação anti-racismo, informação de direitos, comunicação intercultural, participação política, por exemplo.

Tudo isto me parece muito meritório, e revelador de uma abertura à sociedade civil e ao contributo dos próprios imigrantes, o que é fundamental na construção de uma real coesão social.

Na estruturação do novo Plano são postas em destaque as áreas da diversidade e interculturalidade, da protecção e integração dos imigrantes em situação de desemprego e a dos idosos imigrantes, o que parece indicar uma preocupação com o respeito pela diferença, pela coesão, e com a vulnerabilidade dos trabalhadores activos e na reforma. Neste sentido, o quadro parece-me adequado e até mais humanizado do que a tendência geral dos Estados da EU. Por exemplo, no ponto 5 do actual Plano, sobre solidariedade e segurança social, a medida 33 estabelece o apoio humanitário a situações de pobreza extrema de imigrantes visando garantir apoio social e o respeito pelos direitos dos imigrantes em situações de pobreza extrema, independentemente do seu estatuto de permanência em Portugal. Esta é uma medida que dificilmente encontraríamos noutros países da EU, onde os partidos nacionalistas de extrema-direita com peso eleitoral fazem guerra aberta aos imigrantes. Em Portugal não estamos nem estaremos aí.

Agora, a passagem da letra da Lei às práticas quotidianas é outra coisa, e aí há que estar consciente das contradições que existem para poder superá-las. Por exemplo, como a polícia se comporta face a ilegais, ou como os media tratam notícias sobre imigrantes, ou ainda como educadores ou técnicos de saúde lidam com a diferença cultural.
 

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