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30-12-2021        Vida Judiciária

Os tribunais enquanto edifícios, edifícios públicos, que são vistos e vividos pelo judiciário e pelo público, obedecem a um complexo programa arquitetónico, que deve responder a questões de organização dos espaços (externos e internos), volumetria, iluminação, climatização, ventilação, acessibilidades, segurança e tecnologias, entre outros aspetos. Estes edifícios, e o programa ao qual respondem, têm também uma forte relação com a história, a política, a economia e a cultura de cada país (na qual também se entende a cultura jurídica e a cultura judiciária), e, consequentemente, com a evolução do direito, substantivo e processual, e as relações que o direito e a justiça estabelecem com as dimensões anteriores.

Nos últimos anos, a discussão sobre o edificado da justiça chamou a atenção para o dilema dos tribunais, que ora estavam instalados em edifícios antigos e monumentais, vistos como adequados aos rituais da justiça, mas desadequados à vida moderna e às tecnologias e com problemas infraestruturais e de manutenção, ora em edifícios novos construídos sem um planeamento adequado às necessidades específicas da justiça. Com a crise pandémica e os sucessivos períodos de confinamento ganharam visibilidade outros desafios relacionados com a tecnologização dos tribunais, com a maioria dos edifícios fechados ou semifechados. A casa da justiça desmaterializou-se e a justiça, os seus operadores, e cidadãos e cidadãs, tiveram de se adaptar às várias medidas adotadas, as quais implicaram, em particular, uma utilização ‘forçada’ de várias ferramentas tecnológicas, como o recurso a audiências virtuais ou online, a par de outras opções.

Em Portugal, os resultados preliminares de um inquérito sobre as condições de trabalho dos tribunais portugueses [1], apresentado no XV Encontro Anual do Conselho Superior da Magistratura (2021), apontam que no primeiro confinamento a grande maioria dos/as magistrados/as judiciais (84%) e dos/as magistrados/as do Ministério Público (67,4%) exerceu as suas funções maioritária ou exclusivamente em regime de teletrabalho. A maioria dos respondentes considera que a adequação das plataformas de apoio às diligências durante o primeiro confinamento é positiva (63,4% de Razoável a Muito Bom). A apreciação em relação aos equipamentos informáticos e ligação à internet ainda que positiva é ligeiramente mais baixa (55% de Razoável a Muito Bom). A maioria dos respondentes avalia também de forma positiva a disponibilização de informação e de material de prevenção do contágio por COVID-19, contudo, manifestaram uma perceção mais negativa em relação à organização dos espaços e do trabalho (por exemplo, relativamente à ventilação dos espaços, distanciamento).
Não é a primeira vez que uma pandemia vem impor desafios à arquitetura (pense-se na influência que teve a tuberculose, por exemplo, na arquitetura modernista), mas há que atender ao facto de que a operacionalização da justiça é muito complexa e necessita de ser pensada com cuidado e atenção. A transformação digital da justiça tem não só implicações ao nível da tecnologia, mas  levanta também desafios institucionais, organizacionais e normativos e poderá ter impacto nas próprias necessidades espaciais dos tribunais, particularmente no que concerne os espaços de trabalho dos operadores judiciários ou os espaços de armazenamento eletrónico [2]. Contudo, houve ainda pouco tempo para refletir sobre os constrangimentos impostos e como podem ser resolvidos, mas também sobre as promessas de futuro e as boas práticas implementadas [3]. Apontamos algumas questões que precisam de ser analisadas neste contexto.

Em primeiro lugar, a realização de videoconferências e o uso de plataformas digitais, com criação de salas de audiência virtuais, tornaram-se prática corrente. Para Garapon [4], tal torna difícil a compreensão dos diferentes papéis processuais, sobretudo para quem está a ter um primeiro contato com a justiça. Para além disso, há que ter em conta que as questões da neutralidade do testemunho e da segurança poderão ficar comprometidas, como apontado por vários operadores. Toda a formalidade da arquitetura e da sala de audiências, que muitas vezes é vista como intimidante, pode ser vista também como um fator de garantia, de imparcialidade e da seriedade do processo, o que se pode perder quando a audiência é feita através de plataforma digital, transmitindo às partes a sensação de estarem perante uma justiça de segunda classe, onde os utentes se sentem invisíveis dentro de diversos quadradinhos na tela do computador (devendo ainda serem equacionadas, nesta sede, questões de iliteracia e de exclusão digital, questões socioeconómicas produtoras de desigualdades e de vulnerabilidades sociais, que são importantes questões de acesso à justiça).

Em segundo lugar, Susskind refere que iremos ter tribunais híbridos, um misto entre presencial e virtual. Mas até agora autores e autoras são omissos quanto à forma como se fará a articulação entre o tribunal presencial e o tribunal virtual, já que tal implicará mudanças processuais radicais, que terão de determinar e estabelecer os critérios através dos quais serão atribuídas as causas a uns (presenciais) e a outros (virtuais), e como será respeitado o princípio da imediação, da publicidade, e garantida a segurança de dados sensíveis.
Em terceiro lugar, há que pensar especialmente na questão da permanência do teletrabalho, por um lado, e na continuidade da necessidade de regras sanitárias (sobretudo de distanciamento social) por outro lado, e que efeitos tudo isto, sobretudo a articulação entre tribunal presencial e tribunal virtual, produz ao nível da construção e da adaptação de edifícios, em particular a sua volumetria, a quantidade de salas e de gabinetes necessários, a organização e flexibilização interna e externa dos edifícios.

Por fim, a desterritorialização da justiça provocada pela virtualização, e o impacto produzido nos mapas judiciais, também devem ser repensados. Será que a justiça deixará de se fazer atendendo a uma geografia específica? Há que refletir sobre o facto de o teletrabalho e de a transformação digital da justiça colocarem pressões ao nível da relação do tribunal com o contexto social local, com o contexto do conflito, com a própria comunidade.
Antes da pandemia, o recurso a tecnologias, como a videoconferência, já era quotidiano, mas o uso de plataformas digitais combinado com o teletrabalho aponta para desafios que devem ser analisados e debatidos relativamente aos paradigmas da sua atuação e representação, especialmente em relação às suas edificações, mas também no que concerne a qualidade, o acesso, reconhecimento e legitimidade da justiça.

________________

[1]Inquérito desenvolvido no âmbito do projeto “QUALIS — Qualidade da Justiça em Portugal! Impacto das condições de trabalho no desempenho profissional dos atores judiciais”, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e do seu Observatório Permanente da Justiça, coordenado por João Paulo Dias e Conceição Gomes, financiado pelo FEDER - Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional através do COMPETE 2020 - Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI) e por fundos portugueses através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projeto 29039, Referência: POCI-01-0145-FEDER-029039.

[2] Cf. Fernando, P.. Intertwining Judicial Reforms and the Use of ICT in Courts: A Brief Description of the Portuguese Experience. European Quarterly of Political Attitudes and Mentalities, 8, 2, p. 7-20, 2019; Branco, P.. The geographies of justice in Portugal: redefining the judiciary's territories. InternationalJournalofLaw in Context, 15, 4, p. 442-460, 2019; Dias, J.P.; Casaleiro, P.; Lima, T.M.; Gomes, C..Condições de trabalho em tempos de pandemia: o caso dos tribunais portugueses.Revista Eletrônica Direito e Sociedade - REDES, 9, 3, p. 51-74, 2021.

[3] Cf. Susskind, R.. The future of Courts. Remote Courts. Disponível em: https://thepractice.law.harvard.edu/article/the-future-of-courts/.

[4] Cf. Garapon, A.. La despazializzazione della giustizia. Milão: Mimesis Edizione, 2021.


 
 
pessoas
Patrícia Branco
Paula Casaleiro



 
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justiça    tribunais    digital    magistratura    arquitetura