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30-04-2020        Público
Portugal tem um problema grave de habitação. Não é nenhuma novidade. A atual crise pandémica apenas tornou mais evidente as suas causas e consequências. Mas também trouxe algo de novo. Trouxe a redescoberta da dimensão coletiva das nossas vidas e a necessidade de nos organizarmos em torno de uma economia do cuidado, orientada para a saúde e para outros bens comuns.

É sabido que o problema da habitação português resulta da ausência de uma oferta pública capaz de disponibilizar um volume significativo de alojamentos familiares com rendas acessíveis. Dos alojamentos disponíveis, apenas 2% são de oferta pública, o que contrasta com oferta de dois dígitos em muitos países europeus. Este problema agravou-se com a especulação imobiliária dos últimos anos, que transformou a habitação num ativo financeiro, isto é, um bem produzido para a captação rápida de mais-valias, e não para satisfazer uma necessidade humana básica. A habitação tornou-se, por isso, cada vez mais inacessível perante a escalada dos preços e das rendas, tornando-se, além do mais, um fator de insegurança com a liberalização do mercado de arrendamento, que facilitou e acelerou o fim dos contratos de arrendamento.

Contudo, o problema da habitação persiste. É certo que as medidas de emergência, como a suspensão dos despejos, o prolongamento dos contratos de arrendamento, as moratórias nos créditos à habitação ou no pagamento da renda, atenuaram o impacto imediato da crise pandémica, evitando que muitas famílias ficassem sem teto. Mas estas medidas são de curto prazo, adiando, ao invés de resolverem o problema.

É necessário desenvolver medidas de médio e longo prazo, até porque o problema da habitação vai agravar-se com o efeito inevitável do confinamento sobre o emprego e o rendimento das famílias. É até expectável que este confinamento se vá manter por algum tempo ainda que de modo mais atenuado. É por isso necessário continuar a garantir que as famílias não percam as suas casas por falta de pagamento dos empréstimos ou das rendas. Mas, uma vez mais, isto não vai chegar.

Sabemos ainda que o turismo, o imobiliário e a construção foram o principal motor, pouco sustentável, de crescimento económico e emprego da economia portuguesa. Mas foram também as principais causas do problema habitacional, apoderando-se dos centros urbanos para fins turísticos e empreendimentos especulativos, desqualificando o trabalho e pagando salários que não chegam para uma vida decente.

Estes setores estão hoje em apuros, pressionando os poderes públicos. Mas o relançamento da economia não pode e não deve voltar às soluções do passado, assentes no turismo massificado ou em estímulos ao investimento estrangeiro com fins especulativos, que priva a economia de recursos necessários para a economia do cuidado.

Contudo, estes setores podem colocar-se ao serviço da comunidade, ao serviço de uma política de habitação. Assim, os apoios que possam vir a direcionar-se para o imobiliário e construção deverão contribuir para a constituição de um parque público de habitação, reabilitando-se património público, ou mesmo adquirindo-se património privado, para os colocar no mercado de arrendamento a preços acessíveis. Dada a necessidade de um enorme esforço de relançamento da atividade económica e do emprego, esta poderá ser uma oportunidade para se começar a erigir um parque habitacional público, que será, é certo, uma tarefa de longo prazo.

De modo análogo, parte dos imóveis turísticos sem uso poderão ser convertidos em equipamentos coletivos para apoiar a abertura gradual da economia em segurança. Passada a situação de emergência, deverá ser proporcionada às famílias a confiança necessária para que as suas crianças possam regressar às creches. Como será necessário garantir que os lares de terceira idade não sejam focos de contágio como foram até aqui.

A economia de cuidado que se impõe é também uma economia de aproveitamento dos recursos materiais e humanos existentes. Outros usos poderão ser dados a imóveis desaproveitados e gerar-se emprego numa economia intensiva em mão-de-obra, mas com condições de trabalho decentes. Poder-se-á converter o alojamento local em arrendamento de longa duração, que não requererá um grande esforço, podendo rapidamente aumentar o arrendamento nas cidades. Mas poder-se-á também converter outros imóveis deste setor em equipamentos coletivos, aumentado a capacidade dos serviços públicos no apoio à infância, a pessoas dependentes e à terceira idade, empregando e qualificando os trabalhadores do turismo.

Isto é, os apoios públicos aos setores do turismo, imobiliário e construção deverão ser colocados ao serviço do bem comum, devem contribuir para a provisão pública de habitação, que ainda está por realizar neste país, e para reforçar os serviços públicos em áreas em ainda deficientes. Medidas como os Vistos Gold, o Regime Fiscal para o Residente não Habitual, ou as isenções de IMT, IMI e AIMI para continuar a apoiar reabilitação com fins especulativos, não servirão a economia do cuidado.

Serão certamente necessárias medidas estruturais mais profundas. Será essencial cortar com a lógica neoliberal prevalecente até aqui, pondo fim a uma sociedade regulada prioritariamente pelos mercados, designadamente financeiros, que privilegiam a hiperconcentração do capital e a extração de rendas. O controlo do crédito e dos seus fins será também fundamental.

Mas poder-se-á já evitar que a recuperação da atividade económica e a promoção do emprego com recursos públicos não volte a alimentar a especulação imobiliária e por esta via agravar ainda mais o problema da habitação e degradar os serviços públicos que protegem e cuidam de todos nós.


 
 
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