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27-07-2021        Sinal Aberto

uito provavelmente, de todos os protagonistas da Revolução de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho terá sido, e assim permanece, aquele que sentimentos mais desiguais desperta. Amado e odiado, desde logo pela forma como se tornou um dos símbolos maiores do derrube da ditadura, do qual foi o principal estratega operacional e que comandou a partir de um edifício pré-fabricado instalado no quartel da Pontinha. E de seguida por ter sido um dos protagonistas do processo revolucionário na sua fase ao mais épica e dramática, nela servindo, ao mesmo tempo, como agente mobilizador e como árbitro. Mas também pela forma como viveu os anos pós-Revolução, assumindo-se durante algum tempo como um dos símbolos da resistência à institucionalização de uma democracia estritamente representativa – altura na qual aceitou ser a «consciência moral» de setores que a ela preferiam um «poder popular» que julgavam mais perfeito – e mais tarde, já perto do final da vida, aceitando com alguma amargura que o regime democrático tivesse esquecido o ideal de utopia inscrito na sua matriz fundacional.

O extremar de posições em relação a Otelo funda-se, a meu ver, no desconhecimento ou na falta de compreensão de duas dimensões importantes da sua personalidade. Por um lado, na dificuldade em entender, de acordo com parâmetros de hoje, que possa ter existido um político com tão grandes responsabilidades e que chegou a deter tamanho poder, cuja personalidade se pautou sempre, no plano político, por uma enorme ingenuidade e até por alguma hesitação. Por outro, na impossibilidade de compreender alguém que, sendo estruturalmente, na dimensão da personalidade repetidamente testemunhada, um idealista e um romântico – a quem possui tais caraterísticas, como se sabe, muito raramente é concedido o poder supremo – , se envolveu com um tempo «quente», de caraterísticas revolucionárias pautadas por uma acelerada mudança, onde, como a História tantas vezes tem comprovado, o pragmatismo e a tomada de decisões não dispõem de tempo para grandes ponderações, negociações diferidas e jogos de corredor.

Para os inimigos da liberdade e da democracia, Otelo será sempre objeto de ódio, como um dos principais rostos daqueles capitães de Abril que destruíram o seu ideal de um Portugal imperial e antigo, julgado «grande», apesar de mergulhado na pobreza, na ditadura e na opressão de outros povos. Esses usarão sempre todos os argumentos, reais ou imaginados, para tentar apagar a sua memória e a lembrança dos ideais e do tempo que representou. Mas existem também aqueles outros, que não sendo inimigos da democracia, não conseguem pensar outra que não aquela que temos, como não conseguem entender que em dado momento pareceu possível passar para o plano da vida as utopias que a maioria apenas conhece das grandes proclamações em papel. Estes destacam de Otelo uma ou outra escolha infeliz, ou alguma frase pronunciada no calor da Revolução. Os argumentos que invocam, marcados pela incompreensão, acabarão esquecidos pela história da democracia portuguesa. Esta não precisa absolver Otelo, pois já lhe deu o lugar fundador que merece.


 
 
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Rui Bebiano