A Rua de Montarroio fica próxima da Baixa mas, simultaneamente, disfruta de uma distância “sanitária” e salutar, uma distância que, entre outras coisas, a foi protegendo da progressiva decadência que assolou esse espaço central de Coimbra nas últimas décadas. Na Rua de Montarroio, n.º 75-B, fica um estabelecimento comercial que foi, é, e sempre será, uma canção. Podemos até considerar que a tradição desempenha um papel fundamental nessa canção de Montarroio, tal como reza a letra de uma das melodias mais famosas da cidade que acolhe a tipografia. Mas só isso. Acreditem que de sonho, nada tem. Está acordada e bem acordada.
A Tipografia Damasceno encerra em si uma tradição sublime, uma tradição cujo valor principal reside precisamente no facto de se manter viva e futurante. Viva, porque resiste e insiste na cultura material das impressoras, das máquinas de coser e de agrafar, das guilhotinas, dos tipos, dos caixotins, dos blocos, das ataduras. Viva porque nela habita um riquíssimo arquivo gráfico e tipográfico, de livros, brochuras, folhetos e cartazes, que projetam essa tradição no presente. Viva, finalmente, porque consegue atrair um entusiástico conjunto de jovens designers gráficos, ansiosos de cruzar todo esse universo tipográfico, onde predomina a materialidade analógica, com as suas práticas eminentemente digitais e assim explorar novas potencialidades estéticas e metodológicas. Sim, no número 75-B da velha Rua de Montarroio, a Tipografia Damasceno recebe frequentes visitas de novos designers para sessões de trabalho, workshops, ou pura e simplesmente por curiosidade cultural. É o local onde esse fértil cruzamento entre o digital e o analógico tem lugar. Por isso é também futurante.
O responsável pela empresa é o tipógrafo Rui Damasceno, a responsável pela aproximação ao design contemporâneo é a artista gráfica Joana Monteiro.
Rui Damasceno é um artista tipógrafo, um dos melhores nas artes do prelo, que há várias décadas insiste na preservação da composição com tipos de chumbo, resistindo estoicamente ao generalizado desaparecimento dessa arte tradicional e honrando assim a tradição histórica, política e cultural que lhe foi transmitida pelo fundador da empresa e seu pai: o Senhor João Damasceno. Joana Monteiro é uma designer com uma brilhante carreira internacional, que sempre soube cruzar estes mundos tão artificialmente separados: o técnico e o tecnológico, o analógico e o digital, o artístico e o utilitário.
O encontro entre os dois, no Clube dos Tipos, já deu alguns frutos entusiasmantes, como a organização periódica dessas iniciativas, que entrecruzam as artes gráficas contemporâneas com as artes tipográficas de cariz tradicional. É precisamente essa atividade que foi atraindo a comunicação social, rádios, jornais e televisões, locais e nacionais, que já lhe dedicaram notas de divulgação e reportagens.
Agora, mais do que nunca, precisamos da Tipografia Damasceno tanto quanto precisamos da tipografia digital. Precisamos de referências históricas e de referências políticas, que são uma e a mesma coisa. Precisamos de revalorizar a memória, tanto quanto valorizamos o presente e ambicionamos o futuro. Precisamos da condição grave do chumbo dos tipos, ordenados nos caixotins, atados nos blocos, tanto quanto prezamos a liberdade volátil de centenas de fonts a desfilar por ordem do cursor. Se não for a tipografia tradicional a conduzir as nossas referências e a legitimar os nossos valores, deixamos de perceber como chegámos a este mundo do digital, perdemos a cultura histórica. E a História é a mais importante das ciências. Grande parte das ameaças e das perversidades que assolam as sociedades contemporâneas alimenta-se da ignorância histórica e preconiza uma «evolução tecnológica» a-histórica e a-cultural. E, parecendo que não, anda muito «boa gente» a querer enveredar por esse «caminho».
É por isso que, cada vez mais, é importante insistir na Tipografia Damasceno. É importante persistir na Tipografia. É importante resistir.
Musealizar é absolutamente necessário, mas é pouco. É necessário encontrar uma âncora institucional, no Município, na Universidade, numa parceria entre os dois? É preciso continuar e assumir-se como uma nova escola de designers e uma velha escola de tipógrafos que possa, seguindo aos passos duma Bauhaus, há precisamente um século atrás, conjugar a tradição da arte com a tradição do futuro.
O celebrado Angelus Novus, de Klee e de Benjamin, assenta os pés no catastrófico presente, mas está irreversivelmente impelido em direção ao futuro, e solta um esgar brilhante, grato e atento sobre o encadeado de memórias do passado. Assim o deverá ser a Tipografia Damasceno. Tenho confiança que será.