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08-03-2025        As Beiras

O historiadores conhecem bem o papel do acaso, do incidental e do comportamento individual na mudança das sociedades. Devido ao seu imediato impacto, esses fatores podem impor viragens de forma muito mais rápida e intensa que as alterações de natureza política, social ou cultural produzidas num tempo longo e vagaroso. O que aconteceu a 28 de fevereiro em Washington, na Sala Oval da Casa Branca, durante o encontro de Donald Trump e J.D. Vance com Volodymyr Zelensky, pela sua singularidade – na realidade, tratou-se de uma emboscada de «bullying» destinada a diminuir a Ucrânia e o seu presidente – e pelo eco global que logo teve, representa um exemplo consumado desse efeito. As suas ondas de choque distribuíram-se por três diferentes atitudes, duas de peso e outra ruidosa.

A primeira prende-se com a estupefação e a repulsa da generalidade dos governos, dos partidos e da opinião pública mundial, em particular da europeia. Esta incorpora um consenso político muito amplo, que vai da quase totalidade dos setores da esquerda plural – mesmo dos que têm mantido dúvidas sobre a forma de obter a paz – aos que pertencem ao campo da direita democrática. Na sua origem, uma quase unanimidade no apoio à Ucrânia perante a agressão militar russa, cuja ilegalidade e horror Trump deprecia, além da rejeição de um comportamento que foi contra as regras elementares da diplomacia. Contém também a convicção de que o campo da democracia liberal não pode agora contar com os Estados Unidos como parte do bloco político e militar ocidental erguido após o fim da Segunda Guerra Mundial, abrindo caminho a novas configurações.

A segunda atitude comporta três escolhas que acolhem com simpatia o gesto de Trump. A primeira é a dos setores da política norte-americana que subscrevem inteiramente as escolhas agressivas, imperiais e autocráticas da atual administração. A segunda é a de Putin e do governo da Rússia, que aplaudiram a tentativa de humilhação de Zelensky, integrando-a na legitimação da sua posição imperial sobre a Ucrânia, a Europa de Leste e os países do Báltico. Timothy Garton Ash considera mesmo o ardil de Trump «uma capitulação a Putin». O mesmo Putin que tem como um dos principais conselheiros o académico Serguei Karaganov, alguém que recentemente afirmou ser preciso «partir a coluna vertebral da Europa». A terceira é a dos governos e partidos de extrema-direita de todo o mundo, que encontram nos comportamentos dos atuais governos de Washington e de Moscovo, fatores que servem as suas aspirações no assalto às democracias.

A terceira atitude é a da esquerda mais ortodoxa, entre nós quase exclusivamente representada pelo PCP. Setor que continua a ver a Rússia, se já não enquanto «Céu na Terra», como força capaz de se opor ao imperialismo norte-americano, tomado como único existente, e à União Europeia, olhada como mera expressão do «grande capital». Por considerar a causa ucraniana favorável a estes poderes, procura enfraquecê-la e depreciá-la, dizendo-se defensor de uma «paz» traduzida na sua capitulação. Não hesitando em espalhar mitos e mentiras sobre a dimensão «nazi-fascista» da Ucrânia (na realidade, só uma ínfima fração do eleitorado do país vota na extrema-direita), a legitimidade histórica da sua independência (que Estaline também procurou esmagar) ou o caráter do seu presidente (repetidamente descrito como «palhaço» ou mero «provocador»).

As duas últimas atitudes coincidem no total desprezo pela Ucrânia e por quem a defenda, recorrendo para o efeito ao insulto fácil, mas ajudam também a demarcar campos. Mostram quem está do lado de uma paz justa, da democracia e dos direitos dos povos, e quem está contra eles, fazendo depender as suas escolhas e proclamações apenas de interesses estratégicos ou da ideologia. Tornando também mais claro, no caso da União Europeia, a necessidade de referendar e desenvolver uma política autónoma comum que passará por um apoio firme a Kiev. Como parte da necessária resistência aos dois poderes imperiais que, sem pudor porque já o declararam, a pretendem sufocar.https://www.aterceiranoite.org/2025/03/08/tres-atitudes-face-ao-episodio-da-sala-oval/


 
 
pessoas
Rui Bebiano



 
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