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08-03-2025        Público

A profunda viragem política em curso – na escala nacional ou internacional – requer que nos questionemos sobre a natureza da “política” nesta terceira década do século XXI. O sistema democrático está em crise e a própria noção de política parece deslocar-se do terreno da interrogação e da negociação para o campo das certezas e convicções inabaláveis. Creio que não se trata de mero dogmatismo, porque este pressupõe adesão a alguma doutrina; trata-se da pura adesão à lógica da força, em detrimento do poder legítimo.

Assistiu-se nas últimas décadas a um preocupante recuo da racionalidade e dos valores iluministas que projetaram a Europa como o principal baluarte da modernidade. Após o descrédito das ideologias que animaram a ação política ao longo do século XX; perante a falência do socialismo e do comunismo como sistemas alternativos ao capitalismo; com a erosão do sentido republicano e da social-democracia; o desgaste da cultura democrática em benefício dos identitarismos; são, todas elas, tendências que parecem empurrar-nos para um vazio de valores, de referências, de visão estratégia e, num certo sentido, para a rejeição da própria política na sua aceção mais nobre. Num mundo cada vez mais complexo, são, paradoxalmente – ou talvez não –, as ideias mais simplistas, as narrativas mais primárias, que tomam a dianteira.

Ao mesmo tempo, o discurso político clássico (bem como os seus principais agentes) atingiu a exaustão e gera a repulsa de boa parte das gerações mais jovens, que exigem respostas claras e por isso aderem às propostas afirmativas, simples, aos líderes com instinto matador, fugindo da “política” como o diabo da cruz. “Os políticos” são facilmente tomados como “o inimigo”, pelo que os únicos em que acreditam são aqueles que acicatam o ódio contra a política (para beneficiarem de um “poder sem política”), trocando a política pelo “mando”. Por outras palavras, cada vez mais gente adere a posturas arrogantes dos poderosos e foge das personagens mais cultas e inteligentes.

Porquê? Estão em marcha poderosos mecanismos psicossociais que se difundem na sociedade, reformatando as mentalidades dos cidadãos – ou pelo menos contingentes cada vez maiores –, tornando-os seguidores incondicionais de líderes autoritários e potenciais súbditos de futuros tiranos. A revolução informática e digital, dominada pela lógica neoliberal, está a tornar-se um poderoso instrumento no desmantelamento da cultura política democrática. Em vez de uma democracia eletrónica, em vez de se usar esses meios como ferramentas ao serviço da transparência e da participação cidadã, eles são cada vez mais apropriados pelos interesses dos grandes negócios que manobram influenciadores, sistemas algorítmicos e redes digitais com vista a maximizar lucros e docilizar públicos massificados e alienados.

Como corolário da desconfiança, cansaço e afastamento dos cidadãos face à vida pública, cresce uma vontade indómita de obediência dos fracos e ignorantes em relação aos ricos e poderosos. Nesse contexto, o líder salvífico surge travestido de uma linguagem exaltante, estimulando nos seus incautos apoiantes uma projeção identitária que é tanto mais incondicional quanto mais emocional e radical contra “o inimigo” (o sistema, a elite política, o que for). São principalmente essas camadas mais vulneráveis que aderem ao discurso de ódio, e que recusam a retórica intelectualizada e incompreensível do campo político da esquerda. A esquerda radical caminha para a insignificância e a social-democracia/esquerda moderada desgasta-se na sua incompetência e incapacidade para oferecer esperança a milhões de pessoas que se sentem deixadas para trás (veja-se o caso da ex-Alemanha de Leste).

Os novos aplicativos da inteligência artificial (ChatGPT, Bard, Copilot, DeepSeek, etc.) são até muito ágeis em nos oferecer diagnósticos interessantes sobre a crise das democracias. Porém, o atual paradoxo da humanidade é que tende a acomodar-se na ideia fictícia de que a IA e o mundo digital virão repor a ordem e distribuir oportunidades a todos. Esses equipamentos incidem no cidadão comum criando uma vertigem descontrolada de deslumbramento, a qual esconde o lado sombrio desta brilhante inteligência. Ela obedece a programas que, sob a capa de um acesso fácil ao conhecimento, promovem indivíduos intelectualmente limitados e despojados de sentido crítico, subtilmente conduzidos a aderir a modelos de consumo pré-formatados, seja no plano material, seja na oferta discursiva que dá expressão às grandes frustrações de pessoas ressentidas. A revolução digital é suportada pelo poder do algoritmo, que é estrategicamente orientado; destina-se, por um lado, a suprimir o trabalho humano numa imensa variedade de setores, mas, por outro lado, contribui objetivamente para moldar o nosso gosto, as nossas escolhas e servir os grandes centros de poder que controlam esses meios e as redes digitais em geral.

Em suma, o declínio da política tem como reverso o crescimento da extrema-direita e o advento de novos fascismos, tendência que é inseparável de um efeito de saturação da retórica e do discurso político clássico, o qual deriva de um conjunto complexo de fatores, como sejam as persistentes desigualdades, o sentimento difuso de insegurança, a rejeição do caos, a impotência do cidadão para melhorar a sua vida, o descrédito na classe política, a busca desesperada de afirmação identitária (nos planos individual, comunitário e nacional); o poder crescente dos novos media e redes sociais, que produzem ao mesmo tempo consentimento e ressentimento. Dir-se-á, enfim, que vivemos tempos de perplexidade e horizontes de distopia; mas é justamente por isso, contra isso, que precisamos reinventar novas utopias.

 


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
sociedade    política    democracia