O tema desta crónica ganha relevância nos tempos que correm, quando os dois grandes campos do combate político global dos últimos dois séculos, o da democracia e o do autoritarismo, se defrontam como não se via desde o final da Segunda Guerra Mundial. Como formas próprios de relacionamento de cada indivíduo com os seus semelhantes, o sectarismo e o fanatismo expandem-se como flagelos que cruzam a história e, no mundo atual, tendem a toldar a lucidez e a reforçar os projetos que sustentam ou preparam tiranias. Para serem contrariados, importa observar como funcionam, mas também de que modo se instalam no nosso dia a dia e no universo do combate político.
Fosse ela religiosa, política ou de outra natureza, Max Weber via na seita um «grupo contratual», criado e fechado com base em princípios comuns que o distinguem e separam rigidamente dos demais, com estes estabelecendo permanentes relações de conflito. Ernst Troeltsch juntou a esse sentido um importante suplemento: o seu seguidor vive a sua convicção de forma muito intensa, constante e enérgica, subordinado a um coletivo que lhe impõe princípios, condutas e padrões de discurso. Surgindo inicialmente como um núcleo minoritário, a seita procura apropria-se do universo em seu redor, visando impor a toda a sua sociedade, pela propaganda ou pela violência, as suas metas e convicções.
Por sua vez, o fanatismo ecoa a adesão cega e intransigente a uma fé, ideologia, partido ou comunidade, esforçando-se ao máximo por impor valores, comportamentos ou linguagens rígidos e que excluem quaisquer interpretações fora do dogma. O fanático exprime-se por um «furor divino», iluminado por certezas que determinam uma atividade arrebatada e constante encarada como sagrada. Crê incarnar os interesses de um deus, de uma pátria, de uma classe social ou de um povo inteiro, quando não a corrente da História, interpretados como verdade única, perfilhada sem hesitação. Em 1756, na Enciclopédia francesa, Alexandre Deleyre viu já o fanatismo, de uma forma certeira, como «doença que pode atingir os adeptos de todas as obediências e expandir-se por contágio».
Sectarismo e fanatismo são inseparáveis, mas não só pelas condutas que determinam. O mais importante fator de aproximação é a comum dificuldade que os seus praticantes revelam para reconhecer escolhas que questionem as suas certezas, rejeitando o diálogo com outras convicções, mesmo as mais próximas, e não reconhecendo a hipótese do erro. Encaram até a abertura como uma traição, e quando muito aceitam fazê-lo em circunstâncias críticas, logo recuando ao primeiro obstáculo. Comum também é o uso de modalidades dessa «novilíngua» referida por Orwell no romance distópico 1984: apoiada em palavras simples e frases marteladas, ela coage a diversidade do pensamento e da ação. Um padrão detetável em grupos que adotam soluções sem cedências nos extremos do espetro político ou em organizações religiosas ultradogmáticas.
Porém, é um logro pensar-se que não encontramos traços destas condutas em partidos institucionais «moderados», onde, tantas vezes, a conjugação de interesses, a baixa formação cultural e, agora, a influência dos valores e dos métodos de populismo, desenvolvem ambientes onde eles emergem. A forma como a defesa do grupo em muitos casos se sobrepõe à clareza e à razoabilidade das propostas e medidas, ou o modo como se fecham os ouvidos a todas as ideias que não venham do próprio campo – é ver, por exemplo, o modo como nas redes sociais muitos desses sectários jamais dialogam com opiniões, mesmo das mais moderadas, propostas por quem em rigor não seja «dos seus» – tende, por sua vez, a bloquear a sua capacidade de autocrítica e de renovação.
No tempo de cegueira que cruzamos, marcado por um feroz assalto às democracias reforçado agora com a vitória de Donald Trump, pelo cerco à liberdade imposto pelos diferentes regimes autoritários e imperiais, e pautado ainda pela tirania determinada pelas grandes redes de manipulação e desinformação, o alastramento destes dois flagelos deve preocupar-nos. A solução está em boa medida na inscrição nas agendas políticas de um persistente combate cultural, indispensável para oferecer lições de conhecimento e humanidade, controlando a expansão da mentira e do ódio, e alimentando a certeza de que diversidade, equidade, justiça e liberdade não são bens descartáveis. O que sectários e fanáticos de todos os quadrantes se esforçam por nos fazer crer.