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05-05-2020        Mapa - Jornal de Informação Crítica

Em tempos da pandemia da Covid-19, o movimento feminista anticapitalista internacional está a trabalhar para redefinir o terreno da luta no sentido de respostas mais inclusivas e estruturalmente transformativas ao regime de quarentena: a proposta de Rendimento de Cuidado e a sua articulação no âmbito do New Deal Verde para a Europa.

Um dos efeitos da pandemia da Covid-19 que tem recebido maior atenção política e dos media são as consequências económicas desta – em particular as do regime de quarentena. Isto levou a propostas governamentais (por exemplo, o decreto «Cura Italia») e não governamentais (reivindicações por um «rendimento de quarentena», e/ou rendimento básico universal) que se confrontam na esfera pública, moldando o campo de possibilidades e a luta social e política. Entretanto, contudo, o movimento feminista anticapitalista internacional está a trabalhar para redefinir o terreno da luta numa direção que permita respostas mais inclusivas e estruturalmente transformativas. Isto resultou na proposta para se estabelecer um Rendimento de Cuidado – que acaba de ser lançada por meio de um webinar internacional e de uma carta aberta aos governos de todos os países. Esta intervenção resume os pontos-chave da proposta de Rendimento de Cuidado, e a sua articulação no âmbito do New Deal Verde para a Europa (NDVE/GNDE), com o objetivo de abrir o debate sobre a utilidade estratégica destas propostas na situação política atual.

A campanha internacional pelo Rendimento de Cuidado

A proposta consiste em reconhecer o trabalho de cuidado não remunerado (ou com remuneração baixa e sem direitos), especialmente atribuído a mulheres e a sujeitos marginalizados, como uma função social necessária e ineliminável, mas ao mesmo tempo invisível e ignorada pelas medidas anticrise – mesmo quando a pandemia e a quarentena resultam num fardo sem precedentes sobre este trabalho. A carta da proposta nota que a Covid-19 veio somar-se a todas as pandemias invisíveis (a pobreza, a guerra, a violência doméstica, a austeridade) que têm vindo a afetar os setores mais vulneráveis da população há décadas – incluindo as famílias monoparentais, os/as doentes, os/as deficientes e os/as idosos/as. É sabido que a pandemia está a enfraquecer a nossa capacidade de resistir e de sobreviver física e financeiramente: desde sistemas imunitários já comprometidos pela pobreza, discriminação, poluição, guerra, ocupação, deslocamento e outras formas de violência, até cuidados de saúde e rendimento inadequados, especialmente no Sul global, nas comunidades racializadas do Norte entre refugiados de todo o mundo.

Em resposta ao vírus, continua o documento, os locais de trabalho, as escolas e os transportes foram fechados/parados – e as propostas para substituir os salários perdidos estão a ser discutidas. Estas medidas drásticas mostram que os governos podem agir rapidamente e encontram dinheiro para lidar com as «emergências», se o desejarem. Neste momento crítico, portanto, torna-se essencial organizarmo-nos e lutar para redefinir coletivamente o que precisamos.

A campanha do Rendimento de Cuidado é promovida pelo movimento transnacional Greve Global das Mulheres (GGM/GWS). É herdeira da campanha de Salários para o Trabalho Doméstico do início dos anos 70, que marcou profundamente o movimento internacional feminista, e que se fundiu com a greve feminista de 8 de Março. Uma das reivindicações centrais da GGM é reduzir drasticamente as despesas militares, atribuindo pelo menos 10% desta redução a serviços sociais e de apoio ao trabalho de cuidado – não apenas através de salários mas também através da oferta de serviços públicos gratuitos. Entre estes, o apoio a vítimas de violência doméstica ocupa um lugar central, e a sua prevenção através do apoio económico que possibilite a independência das mulheres – orientações também adotadas na Itália pelo movimento Non Una Di Meno.

Nos anos 80, a petição As Mulheres Contam – Contem o Trabalho das Mulheres deu voz a um movimento em massa para o reconhecimento deste trabalho; assinada por 1200 organizações representando milhões de mulheres por todo o mundo, obteve uma resolução das Nações Unidas (em 1995) que exortou os governos a avaliar e a valorizar o trabalho não-pago em relatórios do PIB. Apesar do valor deste trabalho ser estimado em 10,8 triliões de dólares, nenhum mecanismo de mercado ou políticas públicas garante que este valor seja sistematicamente traduzido em rendimento para as mulheres ou para aqueles que desempenham trabalho de cuidado não-pago. Em vez disso, continua a carta, torna-se absolutamente necessário apoiar os cuidadores através de um rendimento que reconheça a sua função pública e que os ajude a cuidar da melhor forma possível.

Na Europa, conclui a carta, este pedido está agora incorporado numa nova proposta político-económica, o New Deal Verde para a Europa (NDVE/GNDE), que o torna um princípio basilar do seu programa de justiça climática. Com efeito, o NDVE (GNDE) permite o estabelecimento de um rendimento para todos aqueles que cuidam de pessoas, do ambiente urbano e rural, e do mundo natural. Finalmente, a proteção das pessoas e a proteção da Terra podem ser equiparados e priorizados sobre um mercado que não se responsabiliza por essa proteção.

Outro New Deal Verde é possível – e é feminista.

No início de janeiro deste ano, a Comissão Europeia aprovou o Pacto Verde, um plano de investimento para reduzir as emissões que causam alterações climáticas. Desenvolvido em resposta às recentes iniciativas do Partido Democrata norte-americano, e em particular ao New Deal Verde lançado pela congressista Alexandria Ocasio-Cortez com o apoio de Bernie Sanders, e à intensificação dos protestos climáticos por todo o mundo, o plano da Comissão adota uma abordagem neoliberal à crise climática, que consiste numa perspetiva de desenvolvimento verde limitado por políticas de rigor fiscal que não permitem a expansão da despesa pública. O plano é, portanto, baseado numa lógica perversa de cima-para-baixo em termos da distribuição de riqueza gerada: só se a economia de mercado crescer é que os fundos ficam disponíveis para compensar pelos danos que causa, incluindo as alterações climáticas, as desigualdades e o decrescimento do emprego.

Porém, este não é o único plano disponível. Nos mesmos meses em que o New Deal Verde estava em preparação, uma rede de investigadores/as, intelectuais e ativistas de toda a Europa – instada pelo movimento Diem 25 – dedicou-se à compilação de um plano alternativo, a ser incluído no contexto de uma campanha alargada de mobilização para a democratização da economia europeia e de medidas anti-crise. O resultado foi o New Deal Verde para a Europa (NDVE/GNDE), centrado num documento intitulado «Um Modelo para a Transição Justa da Europa». A diferença é radical. O NDVE (GNDE) é baseado em critérios redistributivos das finanças públicas que dão prioridade à luta contra as desigualdades e a injustiça ambiental e à democracia económica, tendo em vista o pós-crescimento. Enquanto que o programa da Comissão é de cima-para-baixo, dirigido aos governos dos países da União Europeia para adotarem incentivos de mercado para o benefício de empresas e negócios em geral, o NDVE (GNDE) é uma plataforma política, um projeto estratégico destinado a desencadear mobilizações alargadas a partir de baixo.

O NDVE (GNDE) representa uma oportunidade histórica para uma revolução económica eco/feminista. Para garantir uma transição equitativa para uma economia de «pós-carbono», o plano visa mover o foco da criação de rendimento e assistência social coletivos da produção industrial para a reprodução social e ambiental, i.e., a manutenção, reciclagem, reparação e restauração dos recursos ambientais, infraestruturais e sociais, ou seja, o trabalho do cuidado – tanto de pessoas como do ambiente. Neste espírito de articulação estrutural entre reprodução social e ecológica, o NDVE (GNDE) propõe o estabelecimento de um Rendimento de Cuidado que seja disponibilizado para todos/as aqueles/as que estão envolvidos/as no cuidado não-pago de pessoas ou ambientes urbanos ou rurais (através da defesa organizada contra o extrativismo e a degradação, mas também da reabilitação e cuidado de áreas comuns, do solo, da água, das florestas, da biodiversidade), tanto no lar como na comunidade e no ecossistema.

Uma proposta como esta, de reestruturação da economia baseada em princípios eco-feministas, não surge, evidentemente, do nada; incorpora décadas de luta, ativismo e investigação feminista e de justiça ambiental. O conceito de Rendimento de Cuidado é, na realidade, o resultado de uma colaboração originária no seio do grupo dos que contribuíram para o referido documento, «O Modelo para a Transição Justa da Europa», em particular entre Selma James e Nina López (GWS), Giacomo D’Alisa (Research & Degrowth) e eu mesma. Dá expressão a um conceito alargado, ou socioecológico, de «cuidado», resultando do entrelaçamento de economia política feminista, ecofeminismo (através do conceito de Cuidado da Terra – Earthcare) e perspetivas de decrescimento.

A campanha NDVE (GNDE), que incorpora o Rendimento de Cuidado num vasto programa europeu de reconstrução financeira e produtiva, constitui uma oportunidade histórica e um recurso de enorme importância para desenvolver uma política social feminista capaz de fazer face ao desafio climático do nosso tempo. Contudo, a campanha não prescreve detalhadamente os métodos para se atribuir o Rendimento de Cuidado: estes terão de ser elaborados independentemente por cada movimento e entidade política que o queira fazer seu, baseado em necessidades e condições específicas. Mais do que um programa completo de políticas sociais, o NDVE (GNDE) é proposto como uma plataforma de luta aberta à contribuição de todos os movimentos que partilhem as suas orientações, no espírito de democratização e descentralização das políticas económicas e climáticas europeias através da participação de uma variedade de sujeitos coletivos lutando por justiça ambiental. Esta, como é agora bem sabido, é baseada no princípio de que a crise ecológica está enraizada nas profundas desigualdades sociais e globais geradas pelo modelo capitalista, colonial e patriarcal. Este princípio básico permite hoje – talvez pela primeira vez em décadas – pensar num feminismo que seja efetivamente o pilar de uma mudança social radical.


 
 
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Stefania Barca



 
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