Professor universitário, crítico, ensaísta e historiador, Rui Bebiano assumiu em julho último a direção do Centro de Documentação 25 de Abril, numa altura em que parece ter entrado numa fase de “não retorno” a reinstalação do projeto na rua da Sofia. As novas instalações vão permitir a concretização de projetos há muito adiados e o incremento de outros, nomeadamente o acolhimento em melhores condições de um público interessado. Com a instalação no Colégio da Graça e o consequente aumento do espaço físico, Coimbra irá finalmente acolher o espólio de Maria de Lourdes Pintasilgo. Entrevista por Lídia Pereira
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Estuda há muito a história recente do país. A direção do Centro de Documentação 25 de Abril é um grande desafio?
É um grande desafio, com certeza. Esta é uma questão que me foi colocada há relativamente pouco tempo e no contexto da alteração da administração da Universidade de Coimbra. Esta possibilidade agarrei-a, por um lado, justamente como um desafio, mas também como um dever. E não falo de dever apenas em termos institucionais. Falo de dever porque, no meu caso concreto, o trabalho que tenho desenvolvido sobre a história recente de Portugal, sensivelmente a partir do final do Estado Novo até um tempo mais próximo do nosso, tem como suporte, em termos de documentação, de material de arquivo, o tipo de documentos e o tipo de informação que um centro como este integra. Digamos que assumi a direção do Centro de Documentação 25 de Abril (CD 25 Abril), por um lado, com um sentido de fazer alguma coisa que funcione em termos práticos para a comunidade, mas também como alguma coisa que se articula com aquilo que eu fui trabalhando e trabalho. Este é um desafio pessoal e também científico, se quisermos, porque permite, a partir de um certo espaço, projetar trabalhos que podem ser feitos numa outra dimensão.
Precisamente porque sabe, em concreto, o quão precioso é um espaço desta natureza na investigação?
Justamente. E no caso muito concreto do CD 25 de Abril, com características muito especiais. O centro tem uma vida relativamente curta, relativamente, porque foi formalmente criado em dezembro de 1984. Tem 27 anos. Mas o que é importante, para perceber a dimensão real deste centro, é que aquela que foi a ideia inicial que levou à sua criação, rapidamente foi ultrapassada. Ultrapassada pela positiva, porque o que se pretendia na altura era coligir materiais relacionados com o período vivido uns anos antes, basicamente o período da revolução do 25 de Abril e o chamado biénio revolucionário, os dois anos turbulentos da história recente de Portugal. Na altura, não havia da parte dos seus responsáveis, nomeadamente do seu fundador e diretor até há pouco tempo, o professor Boaventura de Sousa Santos, a expectativa de que acontecesse o que, de facto, viria a acontecer.
O que aconteceu foi um crescimento rápido e uma espécie de alargar do período cronológico a abarcar?
Foi. Porque, de repente, começou a chegar ao CD 25 de Abril informação que transcendia e muito, do ponto de vista cronológico, esse período estrito. De tal maneira que, mesmo sem estar a referir dados excessivos, pode dizer-se que nós, hoje, temos com toda a certeza um dos arquivos mais importantes que existem em Portugal para a história recente do país. Não posso dizer que é o mais importante. Mas, em termos de arquivo ligado a instituições universitárias é o mais importante, com toda a certeza.
De onde é que lhe vem essa importância?
Essa importância vem da informação, consubstanciada em documentos, numa quantidade apreciável – neste momento temos um número que ultrapassa os três milhões de documentos depositados –, o que quem vê o centro ou conhece as suas instalações apenas de fora não imagina. E trata-se de documentos que se referem a períodos que vão sensivelmente desde o pós-guerra, década de 1950, até aos anos de 1980/1990. Por exemplo, ainda recentemente fomos contactados para receber material relacionado com os movimentos anti-propinas da década de 1990.
Da importância resulta uma responsabilidade acrescida. O CD 25 de Abril tem tido capacidade de resposta?
Claro que se coloca o desafio de, em função do crescimento e do alargamento dos seus interesses, ter capacidade de resposta e abertura da informação à comunidade. Nós temos previsto – ainda que, neste momento, com as limitações orçamentais, possa haver algum atraso – a transferência do CD 25 de Abril das suas atuais e manifestamente insuficientes instalações para o espaço do Colégio da Graça.
A reinstalação num colégio da rua da Sofia é um projeto que já vem de longe?
A questão da reinstalação coloca-se já há alguns anos, precisamente porque cedo se percebeu que o crescimento rápido que o centro teve no início iria continuar. Entretanto recebemos um número imenso de espólios. Aliás, nós vivemos basicamente de espólios – neste momento nós temos cerca de 300 espólios – de pessoas que têm ou tiveram relação direta ou indireta com os acontecimentos e que, num determinado momento da vida, ou a família após o seu falecimento, nos confiam esse conjunto de documentos.
Há alguns espólios muito importantes?
Posso dar alguns exemplos, vou dar nomes, embora não queira menosprezar nenhum, de alguns espólios muito importantes de pessoas que tiveram um papel fundamental na nossa vida coletiva dos últimos anos: de Piteira Santos, de Manuela Silva, de Vítor Crespo, Nuno Teotónio Pereira, Manuel Sertório, Salgueiro Maia, Vítor Alves, António Lopes Cardoso, Alexandre Alves Costa, João Martins Pereira, Francisco Keil do Amaral (que esta prometido). E posso referir mais dois que são particularmente importantes, sobretudo o último, também porque se prende com a questão das novas instalações. Um é o de Fernando Valle, para o qual estamos a organizar um convénio – uma vez que o espólio ficará em Côja –, através do qual se concretize todo um trabalho de inventário e cópia de documentos, por forma a que fiquem aqui disponíveis a todos os interessados. Fernando Valle, uma figura que, sobretudo em Coimbra, mantém uma grande ligação afetiva a pessoas e entidades. Depois, como referi, há um espólio de características especiais, também porque se prende com a necessidade da reinstalação do CD 25 de Abril. É o espólio de Maria de Lourdes Pintasilgo.
De que forma o espólio de Maria de Lourdes Pintasilgo tem relação com as novas instalações?
Acontece que o espólio de Maria de Lourdes Pintasilgo, que será integrado no CD 25 de Abril, tem quase tanto material quanto aquele que o centro tem atualmente. Isto significa que, não em termos de número de documentos, mas em termos de volume, em termos de espaço, praticamente duplicará as atuais instalações na rua Augusta. Este é um espaço que tem funcionado, mas que se encontra no limite dos limites.
Está a “rebentar pelas costuras”?
Exatamente. Não só em termos de espaço de arquivo, mas também no espaço disponibilizado ao público, nomeadamente na sala de leitura.
Voltemos ao espólio de Maria de Lourdes Pintasilgo. Espólio que é demasiado importante para que não se criem as condições para que venha para o CD 25 de Abril?
Essa é uma luta, é um objetivo que o centro tem e que eu, como diretor, assumo, e que se prende com a necessidade de demonstrar a indispensabilidade de um conjunto de condições. Certo que vivemos um momento difícil, mas efetivamente confrontamo-nos com esta questão: estão a ser-nos oferecidos materiais de uma valia que não pode ser contabilizada – não é quantificável o valor histórico deste conjunto de espólios – e faltam-nos as condições para os receber.
Que Coimbra e o país, naturalmente, não se podem dar ao luxo de não ter?
Que Coimbra e o país não se podem dar ao luxo de não ter. Como também não podemos dizer às pessoas que nos confiam estes conjuntos de bens que não temos condições para os receber. Portanto, o novo espaço é absolutamente fundamental.
Em que situação se encontra o projeto para o novo espaço do CD 25 de Abril, no Colégio da Graça, na rua da Sofia?
O edifício passou por várias fases e, neste momento, está já muito adiantado em termos de construção. Do ponto de vista da estrutura, o edifício está praticamente feito. Passou por alguns processos complicados, como sempre que, no centro de Coimbra, se faz um buraco. Mas tudo isso está acautelado e neste momento a estrutura do edifício – que albergará também uma parte do Centro de Estudos Socais – está feita. O que está ainda a faltar é algum trabalho interior e depois falta, claro, uma parte importante, morosa e que custa dinheiro: o equipamento e a instalação que, num centro desta natureza, envolve condições especiais, nomeadamente de climatização e de segurança. E tudo isto tem de ser acautelado, uma vez que nós temos a obrigação de preservar bens muito importantes e valiosos que nos foram confiados.
Quais são as expetativas para a reinstalação do CD 25 de Abril no Colégio da Graça?
Embora no momento em que estamos tudo possa acontecer, as expectativas, nomeadamente aquelas que foram expressas pelo senhor reitor, é que o prédio nos possa ser entregue no final do ano de 2012. Com a obra concluída e faltando depois o equipamento e o pessoal necessário ao seu funcionamento. Nós vamos ter um edifício muito maior e não podemos mantê-lo com as sete ou oito pessoas que temos aqui. De facto, um edifício daquela natureza e pelas características do trabalho que nós prestamos e queremos prestar precisa de mais recursos humanos. Aliás, faz parte do projeto do novo centro também um espaço para exposições e pequenos eventos que poderá ser muito interessante, não só para nós, como para a vida cultural da cidade.
Contribuindo para a tão falada e necessária revitalização da zona da Baixa da cidade?
Sem dúvida. Embora nós saibamos que uma parte grande da vida da cidade já não é feita naquela zona, o que há umas décadas era impensável. Há pessoas que passam anos sem ir à Baixa da cidade, porque vivem e fazem a sua vida noutras zonas para onde a cidade cresceu. De qualquer maneira, se existirem mecanismos, interesses que levem as pessoas à Baixa, um conjunto de práticas culturais, por exemplo, elas vão lá. O que nós pretendemos é fazer, ainda a título de exemplo, um conjunto de exposições que tratem momentos importantes da nossa vida coletiva, não apenas ou necessariamente relacionados com o 25 de Abril.
Fazendo a ligação ao antes e ao depois do 25 de Abril?
Exatamente. Fazer a ligação e eventualmente algum trabalho de animação, com debates, pequenos cursos.
A reinstalação do CD 25 de Abril trará condições para concretizar uma série de projetos que agora não é possível?
Sem dúvida. E há ainda um aspeto que se relaciona com esta questão do espaço na relação com a cidade, que é uma preocupação minha como diretor do centro e que eu gostava de ajudar a resolver. Eu tenho a noção – e não apenas do ponto de vista meramente pessoal – que muitas vezes o centro é, não mais conhecido, mas mais valorizado fora de Coimbra do que dentro de Coimbra. Ou seja, as pessoas que nos procuram, para estudar, para ler, para investigar, são maioritariamente de fora. Há até pessoas que se deslocam para fora da cidade para procurar documentos, que depois descobrem que estão aqui.
Significa que também é preciso levar o centro ao conhecimento das pessoas?
Ao conhecimento das pessoas e ao conhecimento da cidade. Embora este não seja propriamente um espaço de lazer, aberto a todas as pessoas. Há algumas até para as quais o interesse do centro é reduzido. Mas, para outras tantas, para quem gosta de conhecer, de estudar, de perceber uma parte fundamental do nosso passado coletivo, o CD 25 de Abril pode ser muito importante. O que me compete também como novo diretor é tentar criar estratégias que permitam que essa ligação com a cidade e com o resto da Universidade de Coimbra se concretize. Porque os próprios organismos universitários estão, muitas vezes, de costas viradas uns para os outros. E é necessário, aqui também, desenvolver capacidade de interação.
Sobretudo agora que se concretiza mais um corte substancial no financiamento à universidade?
Justamente. Embora exista muitas vezes, para quem está de fora, a ideia de que as universidades têm muito dinheiro, que os professores universitários ganham imenso e que há muito desperdício. Eu não posso garantir que não existam casos de desperdício, com certeza que existem, como noutros serviços. A verdade é que os cortes no ensino superior público já começaram a fazer-se há muito tempo, antes de haver cortes noutros serviços.
Apenas se foi mais longe?
Exatamente. Hoje, grande parte dos serviços já está no limite. Em grande parte deles já foi cortado o que havia a cortar. O que há para cortar não é nada. Só se disserem que se despedem professores e se encerram cursos e edifícios. Eu não vou ser catastrofista, mas nós no ensino superior público e nos organismos universitários estamos a viver mesmo com a “última almofada”, como agora considerou o conselho de reitores.