O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos acredita que os partidos de centro-esquerda estão sendo derrotados pelas urnas na Europa porque não conseguem se diferenciar da direita. "Políticas liberais foram fielmente postas em prática e com grande zelo pelos próprios partidos de centro-esquerda", afirma.
No domingo, o Partido Socialista português obteve a pior votação em 20 anos, e o PSD, de direita, fez o novo primeiro-ministro. Duas semanas antes, o espanhol teve uma derrota histórica.
Professor catedrático da Universidade de Coimbra, Sousa Santos, 70, acaba de lançar o livro "Portugal. Ensaio Contra a Autoflagelação", em que discute a tendência de seus conterrâneos a se culpar por tudo.
Ele defende também a refundação da União Europeia e a renegociação da dívida de Portugal, Irlanda e Grécia.
Entrevista por Vaguinaldo Marinheiro.
Folha - As eleições de domingo foram marcadas pela vitória da direita, encolhimento da esquerda e alta abstenção. O português está entre a apatia e a revolta contra o último governo?
Boaventura de Sousa Santos - Não me teria surpreendido se o nível de abstenção fosse ainda mais alto. Nenhum dos partidos com pretensões a governar disse durante a campanha como governaria se ganhasse as eleições. Se o fizesse, não seria eleito. O acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), Banco Central Europeu e União Europeia não deixa dúvidas sobre o tipo de medidas impopulares que terão de ser tomadas e que vão afetar muito o bem-estar das pessoas.
Os portugueses não estão apáticos. Estão expectantes. Leem os jornais e sabem o que está a passar na Grécia, um país um ano mais avançado que nós na desgraça.
A maioria parlamentar da direita mudará algo em Portugal?
Sem dúvida. E temo que não seja para melhor. Portugal vai continuar o seu caminho europeu em contra-ciclo. Adotou o modelo do Estado social depois da revolução de 25 de abril de 1974, quando ele estava já a entrar em crise na Europa. Duas gerações de trabalhadores gozaram de importante proteção social. A terceira geração está à rasca (em apuros) porque já não vai dispor dessa proteção.
Agora, o país vai adotar o fundamentalismo neoliberal quando ele já está em crise a nível mundial, pelo menos desde 2008, e quando os países ditos emergentes, entre os quais está o Brasil, são festejados por terem em algum momento desobedecido as receitas neoliberais.
Com a derrota do Partido Socialista português, apenas 5 dos 27 países da EU estão sob governos de centro-esquerda. Por que o eleitor está rejeitando a esquerda?
As políticas liberais foram fielmente postas em prática e com grande zelo pelos próprios partidos de centro-esquerda a partir do momento em que chamada Terceira Via passou a dominar a social-democracia europeia.
Teorizada nos anos 1990 por Anthony Giddens, seguida inicialmente pelo Partido Trabalhista inglês e depois pelos restantes partidos socialistas europeus, a Terceira Via abriu o caminho para a prioridade da estabilidade dos mercados sobre a estabilidade das expectativas dos cidadãos. Com isso, a centro-esquerda passou a ter muitas dificuldades em distinguir-se da direita.
A crise econômica foi global, mas alguns países (os chamados periféricos) estão sofrendo mais para sair dela. Qual a explicação?
Os países periféricos são países de desenvolvimento intermédio (nem Primeiro Mundo nem Terceiro Mundo) que a partir do inicio da década passada adotaram uma moeda forte ao mesmo tempo em que o bloco econômico em que se integravam, a União Europeia, se abria aos mercado internacional. Quem produz turismo, calçado e têxteis não está em tão boas condições para competir com a China quanto um país que produz aviões ou trens de alta velocidade.
E a crítica dos alemães de que gregos e portugueses, por exemplo, trabalham menos e descuidaram de suas finanças?
O preconceito do Norte contra o Sul vem de muito longe. Os frades alemães que visitavam a Península Ibérica no século 17 já diziam isso e muito mais. Diziam que os latinos são preguiçosos, lascivos e pouco higiênicos. Diziam dos portugueses e dos espanhóis o que estes diziam dos índios e dos negros.
Em 1953, a Alemanha estava na bancarrota, resultado das dívidas punitivas impostas pela derrota em duas guerras. Os credores juntaram-se, perdoaram mais de metade da divida dos alemães e aceitaram receber os juros que fossem compatíveis com o crescimento da economia alemã.
É curta a memória dos alemães. Aliás, esquecem que a construção do euro foi feita à medida dos interesses alemães e que não foram acautelados os interesses de países menos desenvolvidos
Seu novo livro chama-se "Portugal. Um Ensaio Contra a Autoflagelação". Essa necessidade de autoflagelo é inerente ao povo português?
É sabido que a crise por que passa Portugal hoje deve-se também a fatores externos. No entanto, eles raramente são referidos pelos comentadores políticos.
A necessidade de autoflagelação não diz respeito aos portugueses, mas às suas elites políticas e culturais, que estiveram sempre muito distantes do Portugal profundo e olharam para ele com enorme desprezo. Como se não fossem, eles também, portugueses feitos da mesma massa.
A autoflagelação é uma forma de má consciência por parte de quem tem dificuldade em entender um pais que, sendo pequeno, foi capaz de achar o mundo e que por esse "excesso" histórico tende a passar por períodos de grande exaltação histórica ( de "Os Lusíadas" ao lusotropicalismo) e por períodos de grande depressão histórica (a geração de 1870, Fernando Pessoa, no seu melhor, José Saramago). A jeremiada nacional não permite um relação cordial com o país.
O senhor diz que Portugal vive uma crise financeira de curto prazo, uma crise econômica de médio prazo e uma crise política-cultural de longo prazo. Qual a solução para cada uma delas?
A crise financeira exige a renegociação da dívida já, antes que a economia colapse. A crise econômica exige que os extraordinários avanços do país nos últimos dez anos no domínio da ciência e tecnologia sejam absorvidos pelo tecido econômico e social e mudem o tipo de especialização econômica que tem dominado até agora.
A crise político-cultural exige várias gerações de educação para a democracia. Nenhum país pode passar incólume por um período tão longo (48 anos) de ditadura, sobretudo na segunda metade gloriosa do século 20 europeu.
O senhor fala em reavaliar a dívida portuguesa. Isso não seria visto como calote disfarçado?
Portugal tem de honrar os seus compromissos, ou seja, tem de pagar a dívida que legitimamente deve, mas só essa. Parte da dívida portuguesa decorre da manipulação especulativa de juros resultante de promiscuidades de interesses entre especuladores e agencias de rating, o que configura a suspeita de crimes financeiros punidos pela lei nacional e internacional. Toda a divida que decorre dessa manipulação é ilegítima e não deve ser paga. Os ditos calotes da Argentina e do Equador foram anos mais tarde elogiados pelo FMI.
O senhor defende que é preciso refundar o modelo europeu, que estaria morto. Como seria isso?
O modelo de integração europeia foi construído na base do trauma de duas guerras mundiais e com o objetivo de construir uma solidariedade robusta entre os países europeus que pusesse fim à irrupção de nacionalismos agressivos.
Se esse modelo estivesse em vigor --dada a integração econômica e a moeda única--, a dívida não seria portuguesa, grega ou irlandesa, mas europeia. Como isso não aconteceu e como os interesses dos bancos alemães prevaleceram sobre tudo o resto, é claro que esse modelo terminou o seu caminho.
Para refundá-lo, é preciso dar aos europeus a possibilidade de imaginarem um federalismo europeu com verdadeira coesão entre os Estados em que a possibilidade de bancarrota seja tão remota quanto a da Califórnia.
Portugal deve sair da zona do euro? Foi um erro ter adotado a moeda comum?
A saída da zona do euro só poderá ocorrer sem tumulto se abranger mais de um pais e for negociada. O euro como está é insustentável, dado que não dispõe de uma politica fiscal, orçamental e monetária que corresponda a sua ambição.
Ollanta Humala foi eleito no Peru. Só há espaço para a esquerda hoje na América Latina?
A alternativa a Ollanta era horrível e levaria em breve ao caos político. Se a esquerda deu certo no Brasil, não há nenhuma razão para não dar certo no resto da América Latina. A esquerda europeia tem muito a aprender com a América Latina. Temo, no entanto, que não aprenda pois a Europa, depois de ter passado cinco séculos a querer ensinar o mundo (tantas vezes pela força), perdeu a capacidade de aprender.
Por agora, está condenada a viver das ruínas das soluções de outrora.