Centro de Estudos Sociais
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07-02-2013        Visão

Porque é que um cidadão de esquerda, preocupado com o rumo que o país está tomar, temendo que a distância dos cidadãos em relação ao sistema político democrático se agrave, inconformado com a falta de unidade entre as forças de esquerda sociologicamente maioritárias, tem dificuldade em conter a raiva ante as insondáveis uniões divisionistas e divisões unitaristas do PS? Por três razões. Primeiro, sentimento de impotência: sabe que se der um murro na mesa o único efeito possível é magoar-se, tal a incapacidade do partido em distinguir luta política de luta por cargos políticos. Segundo, sensação de perigo: o país precisa de uma alternativa política e o PS, sendo decisivo na construção dela, parece apostado em desistir antes mesmo de tentar. Terceiro, inconformismo antes o desperdício da oportunidade: o PS tem algum potencial para reinventar-se como partido de esquerda, um potencial muito limitado e problemático mas mesmo assim existente.

Centro-me na última razão por ser a única que permite transformar a raiva em esperança, mesmo que esta mal se distinga do desespero. Dois factos bloqueiam esse potencial e outros dois podem ativá-lo. O primeiro bloqueio decorre da qualidade dos líderes. A estatura de Mário Soares criou uma sombra difícil de dissipar. Os líderes que se seguiram distinguiram-se mais pela integridade ética do que pela coragem política (Vítor Constâncio, António Guterres e Jorge Sampaio). O mais lúcido e corajoso de todos, Ferro Rodrigues, foi assassinado politicamente de forma sumária e vergonhosa (a fabricação do seu envolvimento no processo Casa Pia). O segundo bloqueio advém da perda de cultura socialista (e até de cultura geral) entre os dirigentes que amortece as clivagens políticas e aguça as clivagens pessoais. Quem não for militante do PS — a esmagadora maioria dos portugueses — não entende a hostilidade entre José Sócrates e António José Seguro quando ambos são produto da mesma terceira via (entre capitalismo e capitalismo) que vergou os partidos socialistas europeus às exigências do neoliberalismo e os fez vender a alma do Estado de bem-estar social. Seguro está condenado a continuar Sócrates em piores condições e sem sequer (querer) ter margem de manobra para as medidas de reforma do Estado com cidadania que os governos de Sócrates implementaram com algum êxito. Causa arrepios pensar que não frustrará as expectativas apenas por estas serem nulas.

O primeiro facto ativador do potencial de transformação do PS é o contexto europeu e mundial. O Sul da Europa, O Médio Oriente e o Norte de África são as faces mais visíveis da vertigem predadora de um capitalismo selvagem que só se reconhece na extração violenta dos recursos humanos e naturais. É agora mais visível que nunca que o socialismo democrático foi construído contra a corrente, com muita luta e coragem. A Guerra Fria permitiu-lhe economizar na luta e na coragem, e a tal ponto que não resistiu ao fim dela. Tornou-se então claro que a coragem e a vontade de luta dos socialistas se tinham transformado, elas próprias, num instrumento da Guerra Fria, capazes de se exercitar contra comunistas e esquerdistas mas nunca contra capitalistas. É bem possível que não sejam os socialistas a reinventar o socialismo democrático. Uma coisa é certa: a ideia de um outro mundo possível nunca foi tão urgente e necessária e reside nela a última reserva democrática do mundo.

O segundo facto potenciador é que os socialistas portugueses já mostraram estar conscientes de que qualquer vitória que o atual líder lhes proporcione a curto prazo será paga no futuro com pesadas derrotas. Os militantes socialistas jovens e pobres - que (ainda?) não enriqueceram no governo nem nas empresas - leram com atenção o livro de António Costa, Caminho Aberto, publicado em 2012, e certamente ficaram tão impressionados como nós com a experiência governativa, a lucidez política, a capacidade de negociação com adversários, revelada pelo autor num livro que retrata como poucos o Portugal político dos últimos vinte anos e abre pistas luminosas sobre os desafios que a sociedade portuguesa enfrenta. Devem sentir, como nós, a dificuldade em conter a raiva. Poderão bater com o murro na mesa e terem algum efeito além de se magoarem? A tragédia do socialismo democrático atual é ser um fogo apagado que só reacende as brasas quando troca a coragem política pela ética como se a coragem política não fosse eminentemente ética.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos