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02-04-2024        A Tarde [BR]

Início dos anos 1970. Uma mulher, 35 anos, espírito crítico a Emma Goldman, sofre um duplo atentado próximo ao Arco do Cego (bairro de Lisboa). No primeiro, um candeeiro impede o trágico atropelamento, mas não consegue conter a hostilidade dos meliantes que, em seguida, a agridem violentamente com socos e pontapés. Ela, Maria Teresa Horta, estava a objetar, por meio de sua escrita, as normas restritivas às mulheres naquele Portugal sombrio do salazarismo.

Apesar do período marcar, em crescente compasso, a corrosão do Estado Novo, a violência ainda se apresentava como imperativo categórico. Para enfrentá-la, as armas da crítica podem não substituir a crítica das armas, contudo, diria o velho Mouro, quando convertidas em força material, superam todos os obstáculos e liberam o fluxo emancipatório.

Assim, convalescente no hospital, recebe o convite das suas sisters in arms - Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa - para composição de um livro há seis mãos. Inspiradas pela correspondência seiscentista da freira Mariana Alcoforado, as “Novas Cartas Portuguesas” interpelam temas ásperos para o regime em “120 textos que entrecruzam cartas, poemas, relatórios, textos narrativos, ensaios e citações escritos coletivamente (...) abordando temas censurados ou temas tabu, como a guerra colonial, o enquadramento institucional da família católica, ou o estatuto social e legal da mulheres” (Ana Luísa Amaral).

Condicionados pela vigilância implacável do Estado Novo, o livro - após primeira publicação em 1972, com o aval de Natália Correia - foi censurado e as autoras autuadas. Nas palavras do último presidente do Conselho do Estado Novo, Marcello Caetano, “quero chamar a atenção das pessoas [para] que há três mulheres em Portugal que não são dignas de ser portuguesas”. Sem olvidar do parecer da PIDE que, em 26 de maio, enfatiza: “este livro preconiza sempre a emancipação da mulher em todos os seus aspectos (...) algumas das passagens são francamente chocantes por imorais, constituindo uma ofensa aos costumes e a moral vigente no País” (Relatório 9462).

A punição e o cativeiro, entretanto, não ocorreram. Na data para formalizar o litígio, 25 de abril de 1974, os cravos estavam a colorir as ruas. O torpor, presente em 41 anos de obscuridade, foi suplantado pela lucidez em alegria revolucionária. As três Marias puderam, enfim, desfrutar do frescor da liberdade - ainda em progressão, mas imprescindível para consolidar as conquistas históricas celebradas neste jubileu.

Hoje, na luta recorrente contra a barbárie, nós sabemos qual Direcção seguir. “Nada nos deterá ou nos impedirá a marcha, o caminho. Não mais mudos, calados, tampouco com medo ou sozinhos” (Maria Teresa Horta).


 
 
pessoas
Antonio Carlos Silva



 
temas
democracia    literatura    Estado Novo