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01-03-2022        Rua Larga [n.º 56 | 2022]

Como é que os Estados e as sociedades lidam com os eventos disruptivos do seu passado? De que forma se constroem representações públicas sobre esses mesmos acontecimentos? Que atores sociais, e através de que meios, interferem nesses processos? Como é que o passado se vai modelando historicamente nos sucessivos presentes?

Estas são algumas das questões que animam a investigação feita no projeto Crossed Memories, Politics of Silence. The Colonial-liberation Wars in Postcolonial Times (CROME). Financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (ERC), e sediado no Centro de Estudos Sociais (CES), o projeto CROME toma como referente as guerras coloniais e de libertação que, entre 1961 e 1974, envolveram o Estado português e os movimentos africanos apostados em alcançar a independência dos territórios colonizados. Como é sabido, os longos 13 anos do conflito acabariam por criar as condições para o 25 de Abril de 1974 e definir o fim ao império português em África. No continente, por seu turno, a luta anticolonial seria a antecâmara do surgimento de cinco novas nações: Angola, Moçambique, Guiné‑Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

O projeto procura indagar as reverberações deste passado nos sucessivos presentes. Deste modo, visa contribuir para uma história da memória da guerra colonial e das lutas de libertação, atenta à sua modelação diacrónica em função de dispositivos de natureza social, política, ideológica, cultural e económica. Ao mesmo tempo que se pretende analisar a produção discursiva e simbólica deste passado em cada contexto nacional, busca-se igualmente surpreender semelhanças, efetuar paralelismos e propor diálogos sobre uma história comum que, passados mais de 60 anos, permanece incómoda.

A nossa proposta de investigação filia-se numa ainda sub-teorizada literatura que se dedica a estudar os modos como os passados coloniais e as suas ramificações pós-coloniais modelam tanto os novos países que emergem das lutas de libertação como as antigas potências colonizadoras. Na verdade, se nos focarmos nas reminiscências imperiais em Portugal e nas antigas colónias africanas, obteremos dois modos substancialmente distintos de inscrever na memória pública o processo de rutura com o colonialismo.

Em Portugal, tende ainda a prevalecer, apesar de crescentemente desafiada, uma «política do silêncio» relativamente à guerra e à violência colonial que resulta na manutenção, em significativos sectores da população, da imagem de um país de «brandos costumes» e de uma benevolente presença ultramarina. Como resultado dessa representação dominante, transforma -se a guerra, a escravatura, a dominação colonial ou o racismo em temas com débil inscrição pública. O imaginário do império ainda apresenta em Portugal fortes traços de nostalgia, explícitos ou implícitos, e também de ressentimento quanto ao modo abrupto como se processou o corte com o colonialismo. Ao invés, nos países africanos, apesar das suas diferenças, foi predominando uma memória da luta de libertação que reconhece a centralidade e justeza do combate anti   colonial e que objetivamente servirá para reforçar a legitimidade política e simbólica dos movimentos que conduziram as guerras de libertação, tornados partidos únicos nos diferentes pós-independência.

Nos trabalhos desenvolvidos, temos vindo a pensar a guerra e a luta como significantes mnemónicos descoincidentes. Com efeito, a guerra remete para o conflito armado entre o Estado português e os movi   mentos de libertação; a luta surge como expressão de outras resistências, nas quais têm lugar narrativas mnemónicas sobre os processos de construção da diferença colonial, sobre micro e macro violências, sobre modalidades de contestação à presença portuguesa, sobre os modos, nem sempre unívocos, de construção de identidades e pertenças.

Trata-se, assim, de proceder a um cruzamento de memórias que assume múltiplos sentidos. Em primeiro lugar, cruzam -se diferentes tempos históricos, percebendo de que forma as imagens públicas da guerra/luta foram sofrendo mutações históricas. Em segundo lugar, atende -se ao modo como essas representações se plasmam em distintas práticas e processos mnemónicos. Por fim, observa-se o cruzamento entre diferentes países e histórias nacionais, cujo poder de enunciação sobre o passado tem sido determinante na definição de regimes memoriais.

Hoje, num contexto em que se fala das tarefas inerentes à descolonização da história e à importância dos diálogos interculturais, urge colocar em confronto crítico estas dinâmicas, simultaneamente apartadas e conexas, de representação social de um passado que, de modos distintos, continua a ecoar em Portugal e nos antigos territórios colonizados. Interpretá-lo, pô-lo em evidência, compará-lo, discuti-lo, é um desafio fundamental para uma universidade que se quer global e (auto)reflexiva


 
 
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Miguel Cardina



 
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