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24-03-2021        Público

Há um ano, poucos dias depois da identificação dos primeiros casos de infecção com o novo coronavírus, o Conselho Nacional de Saúde Pública (CNSP), então recentemente nomeado e composto por diversos especialistas, não recomendou o encerramento geral das escolas, questão que então alimentava alguma controvérsia e ansiedade junto da população. Apesar de o primeiro-ministro ter sugerido que o Governo iria seguir as recomendações deste grupo de especialistas, a decisão no dia seguinte acabou por ser contrária, sendo decretado o encerramento das escolas. O primeiro-ministro não deixou, no entanto, de referir que o Governo procuraria “adotar a par e passo cada medida necessária com base no melhor conhecimento científico e consenso técnico consolidado”, justificando a aparente contradição com um parecer técnico a nível europeu (do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças).

Esta primeira ocasião parece ter deixado marcas. Desde então praticamente não se voltou a ouvir falar do CNSP, tal como pouco se ouviu falar de aconselhamento científico estruturado. Voltou-se, sim, a ouvir o primeiro-ministro invocar a necessidade de consenso técnico, nomeadamente de novo a propósito das escolas. Não houve, no entanto, qualquer pecado original. Ainda que o esperado seja que a decisão política siga o aconselhamento científico, podem existir razões para que a decisão política não coincida com a recomendação, se justificada de forma clara e transparente. É preciso ter em conta que o modelo de aconselhamento “os decisores perguntam, os cientistas respondem”, assente no tal consenso invocado pelo primeiro-ministro, não reflete o modo como o conhecimento científico emerge.

A relação entre aconselhamento científico e decisão política implica uma distinção de objetivos, cabendo aos decisores públicos assumir a responsabilidade da decisão política, em face do conhecimento existente, seja ele, ou não, consensual – o que sabemos não ser a norma em situações complexas e de elevada incerteza, como o é esta pandemia. Essa fronteira implica, por um lado, que as questões colocadas aos especialistas privilegiem as informações técnicas relevantes para a decisão e não as decisões políticas, por outro lado, que a informação veiculada pelos especialistas aos decisores não seja apenas de conhecimento especializado, mas contextualizado, nas dinâmicas socioeconómicas relevantes e na identificação dos elementos de maior ou menor consenso, de maior ou menor incerteza. Ora tal processo requer tempo e humildade, como tão bem aqui referiu Carlos Fiolhais. A interdisciplinaridade e a coordenação dos diferentes contributos assumem assim particular importância. A informação contextualizada permite aos decisores considerar os diferentes elementos face aos impactos e valores em causa e aos instrumentos de intervenção disponíveis. Como salientam Sheila Jasanoff e colegas, numa análise comparativa internacional das respostas à pandemia: “As respostas foram mais eficazes quando estas abordagens – biológica e social – funcionaram em articulação.”

Os modelos internacionais de aconselhamento científico são diversos. A experiência em Portugal continua, no entanto, a ser muito limitada quanto a uma prática institucionalizada de aconselhamento. Desde logo, preparamo-nos pouco para o futuro, e para os potenciais impactos de tecnologias emergentes. Em vários países os parlamentos nacionais assumiram este papel, criando gabinetes de avaliação de tecnologias, e dinamizando metodologias participativas, próprias de um órgão representativo. Se em Portugal as questões orçamentais já viram nascer uma unidade técnica própria no Parlamento, a discussão sobre o nosso futuro tecnológico aguarda folga orçamental e vontade política.

Existe uma outra figura de aconselhamento em vários países de que pouco se tem falado em Portugal, que é a de Conselheiro Científico Principal do Governo (Government Chief Scientific Adviser). Nomeado a título individual com um mandato independente, sem funções executivas, o conselheiro científico não assume funções enquanto especialista num tema específico. É sim nomeado pela sua credibilidade científica, pela sua capacidade de promover o conhecimento científico na esfera governativa – defender a ciência – e pela sua capacidade de intermediar os especialistas com os decisores políticos, não os substituindo. Como disse Geoff Mulgan, num relatório de reflexão sobre esta experiência no Reino Unido: “O papel principal de um conselheiro científico é o de agir como intermediário e promotor mais do que como conselheiro, [...] consequentemente as suas competências requerem ser as de tradução, agregação e síntese tanto quanto as de conhecimento especializado.”

O modelo até aqui existente em Portugal, demasiado ad-hoc e descartável, não tem consolidado o processo de aconselhamento científico à decisão pública de forma estável e transparente.

O novo Conselho Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCT) é bem vindo neste contexto, depois de vários anos sem órgão consultivo neste sector, mas o seu objetivo, prioritariamente sectorial, e modelo de atuação, colegial, é distinto, e complementar ao potencial papel do conselheiro científico principal. Este último, capaz de identificar especialistas, de ouvir diferentes áreas científicas e promover o seu envolvimento, de mediar a comunicação entre cientistas, decisores e outros atores da sociedade, e de defender a importância da ciência para a decisão pública junto de todo o Governo, poderá fazer a diferença em situações de incerteza científica. Acima de tudo, existindo diferentes modelos possíveis, urge institucionalizar o processo de aconselhamento científico de forma a que os decisores políticos assumam a sua responsabilidade de decisão com base no conhecimento científico disponível e na sua articulação de forma transparente com as dinâmicas socioeconómicas relevantes e os seus potenciais impactos.


 
 
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Tiago Santos Pereira