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19-10-2018        Público

A eleição presidencial em curso no Brasil é um momento de singular importância para o maior país da América Latina, mas também para o futuro da democracia. O clima de intimidação, de violência e de perseguição promovido pela candidatura de extrema-direita e seus apoiantes, após a vitória na primeira volta, tem sido alimentado por um fluxo continuado de fake news, de desinformação e ataques tendo como alvo principal o candidato das forças democráticas, Fernando Haddad. O Tribunal Superior Eleitoral, apesar de ter declarado a intenção de combater as fake news, acabou por admitir não ter capacidade para o fazer. Continuam assim a proliferar, com impunidade, desinformação, insultos e discursos de ódio dirigidos a Haddad, aos seus aliados, apoiantes e eleitores, e aos habituais alvos dos ataques da extrema-direita, como mulheres, pessoas LGBTI, negros, indígenas ou moradores de periferias urbanas, entre outros.

Esta estratégia é articulada com uma outra, que cria uma situação insólita nos processos eleitorais em regimes democráticos: a sistemática fuga aos debates televisivos previstos com Fernando Haddad, impedindo assim que sejam discutidos os projetos em confronto na eleição, e explicitadas e confrontadas de maneira clara as propostas políticas dos candidatos. Essas propostas não deixam de aparecer, contudo, nas entrevistas individuais e nos diferentes atos de campanha dos candidatos, ainda que, no caso de Bolsonaro, de maneira fragmentada e por vezes com declarações contraditórias proferidas por figuras ligadas à sua campanha. Vale a pena olhar mais de perto para algumas dessas declarações.

Na educação, é prometida a generalização do ensino à distância, com a intenção de combater a alegada doutrinação realizada nas salas de aula por professores de esquerda; a remoção de “conteúdos impróprios” dos programas e das salas de aula, ou, por outras palavras, acabar com a liberdade aprender e de ensinar; “repor a verdade sobre o movimento de 1964”, novo pseudónimo da ditadura militar; introduzir o ensino do criacionismo em paralelo com o da evolução; desvalorizar a importância das condições de remuneração dos professores e o seu estatuto profissional; impor aos estudantes medidas disciplinares destinadas, alegadamente, a punir o desrespeito aos professores, através de “repressão democrática”; suprimir as medidas de democratização do acesso ao Ensino Superior.

No domínio do ambiente, as medidas incluem a fusão dos Ministérios da Agricultura e do Ambiente e a sua entrega aos interesses ruralistas; a eliminação de medidas existentes de regulação ambiental, o esvaziamento dos poderes dos organismos de vigilância e da alegada “indústria das multas” que estes promoveriam; “acabar com todos os ativismos” e expulsar as ONGs ambientais e de defesa dos Direitos Humanos, alegados agentes ou cúmplices de uma conspiração internacional para a apropriação da Amazónia... Estes exemplos permitem começar a entender a extensão do programa de retrocesso – de regresso ao Brasil de há 40 ou 50 anos, como afirma Bolsonaro, ou seja, ao Brasil da ditadura – que se prefigura no horizonte... Em caso de vitória, Bolsonaro prepara-se para um ataque sem precedentes às lutas de povos indígenas e populações tradicionais e de ativistas ambientais e de direitos humanos que têm resistido à desflorestação da Amazónia e de outros espaços.  Curiosamente, Bolsonaro reconheceu que o aquecimento global é um problema real, mas afirmou que a sua causa seria o excesso de população. Das suas muitas declarações, não é difícil concluir que essa população em excesso inclui todas as pessoas, grupos e comunidades “descartáveis”, como indígenas, quilombolas e pobres, cujo destino seria o de optar entre a extinção ou a integração, forçadas pelo fim das demarcações de terras, pela violência legalizada dos ruralistas, e mesmo por medidas eugenistas destinadas a evitar a proliferação dos “indesejáveis”.

Este aspeto do projeto de retrocesso merece especial atenção, perante o cenário, recentemente reconfirmado pela ONU, de agravamento acelerado das consequências das alterações climáticas e do aquecimento global. O relatório da ONU recentemente publicado, apoiado no trabalho do IPCC, lança um alerta apontando para a um caminho inverso daquele que, por pressão do “mercado” e dos “investidores” têm seguido alguns países, formalmente comprometidos com a redução de emissões de CO2. É o próprio CEO da Shell, uma das principais empresas petrolíferas do mundo, que veio a público afirmar que, para travar a subida da temperatura e mantê-la em valores compatíveis com uma resposta viável ao agravamento do aquecimento global seria necessário um grande projeto de florestação que criasse outro Brasil, e não desflorestar o que já existe. A ameaça que paira sobre a democracia no Brasil traz assim no seu bojo o agravamento de um dos maiores problemas que neste momento afetam o planeta, com o seu cortejo de efeitos que atingirão, sobretudo, as populações mais vulnerabilizadas pela pobreza, pela falta de água, pela erosão dos solos, pela exposição a desastres, migrações forçadas, perseguições e guerras.

Há apenas dois lados na eleição brasileira: o lado da liquidação da democracia, da afirmação da violência, do medo, do ódio e da aposta numa espiral de desastre; e o lado da defesa da democracia, dos direitos, do respeito pela vida e pela terra. São também estas as opções que hoje se apresentam a quem, em qualquer parte do mundo, se coloca do lado da democracia, dos direitos humanos, da justiça social, cognitiva e ambiental.

 


 
 
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João Arriscado Nunes



 
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