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08-04-2004        Visão
Portugal é um país de conformistas exuberantes e de inconformistas silenciosos ou silenciados. Nestes nossos trinta anos de democracia, recordo, entre os últimos, dois homens notáveis, Jorge de Sena e Vitorino Magalhães Godinho. Inconformista é quem vai contra a corrente, contra o politicamente correcto. Faz análises contra o senso comum e propostas para além do que é considerado legítimo. Ser inconformista é muito difícil nos dias de hoje devido ao peso dos media. Por um lado, reforçam o conformismo ao transformá-lo na opinião pública. Por outro lado, ante o que identificam como inconformismo, ou ignoram-no, se podem, ou, se não podem, hostilizam-no pela dramatização, caricatura ou insulto. Esta actuação de hostilização só é accionada no caso dos inconformistas declarados. Entre os inconformistas silenciados e os inconformistas declarados há vários tipos de inconformismo ignorados pelo comentarismo conformista. Entre eles distingo os inconformistas pedagógicos sempre com esperança de desestabilizar o conformismo (Eduardo Prado Coelho, Maria de Lourdes Pintasilgo e Manuel Villaverde Cabral) e o inconformismo reflexivo, inconformado sobretudo ante o seu próprio inconformismo, de que temos um brilhante caso único, Eduardo Lourenço.
Nos últimos tempos assistimos a um surto de inconformismo declarado: Mário Soares, ao propor negociações com a Al Quaeda, e José Saramago, ao propor o voto em branco. Detenho-me hoje no último. O romance de Saramago é uma denúncia dos males da democracia em que vivemos: distância entre representantes e representados; incumprimento sistemático de programas eleitorais; vulnerabilidade à pressão dos interesses económicos; e, acima de tudo, deterioração dos direitos sociais à saúde, educação e segurança social, conquistados pela mesma democracia que agora os acha descartáveis. O consequente aumento das desigualdades sociais cria um padrão de relações entre cidadãos em que é patente o abismo entre a democracia política e a democracia social. Há quatro anos escrevi um livrito (Reinventar a Democracia, Gradiva, 1998) em que temia podermos estar a entrar num período em que as sociedades são politicamente democráticas mas socialmente fascistas.
A proposta do voto em branco é uma metáfora que, como tal, polariza a relação ideal-real. É uma profissão de fé na democracia porque só esta permite o voto em branco. Mas, sendo o voto em branco, é um acto de resistência contra esta democracia que, no entanto, valida, na medida em que a usa para a denunciar. O voto em branco é, assim, um apelo a que, a partir desta democracia, se construa outra. E aqui termina a sua eficácia enquanto metáfora. Compete aos cidadãos que se sentem interpelados por ela continuar a tarefa de reinventar a democracia de modo a que o real se aproxime um pouco mais do ideal. Nessa reinvenção não se pode prescindir da democracia representativa (DR) como o próprio voto em branco testemunha. Mas tem de se ir para além dela e complementá-la com a democracia participativa (DP). Na DR os cidadãos elegem os decisores políticos, isto é, renunciam a decidir para além do voto, delegando nos eleitos as decisões e esperando que eles decidam a contento. O desencanto de hoje nasce da frustração sistemática dessa esperança. Na DP os cidadãos tomam as decisões de modo organizado. Porque obriga a uma partilha do poder decisório, a complementaridade entre DR e DP é difícil, mas, como mostram as experiências a nível municipal, não é impossível. Penso aliás que nessa complementaridade está o futuro da democracia.
Os inconformistas quase nunca têm razão nos precisos termos em que se manifestam. Mas quase sempre têm razão na identificação do problema que os inconforma e no sentido geral da solução que eventualmente lhe será dada. Aos inconformistas só a história, nunca os contemporâneos, pode dar razão.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos