Centro de Estudos Sociais
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13-10-2005        Visão
Tanto à esquerda como à direita domina hoje o pensamento negativo sobre a sociedade portuguesa. O pensamento negativo caracteriza-se por definir de tal maneira as crises que atravessamos que não há saída para elas ou, o que é o mesmo, as saídas possíveis só um país muito diferente do nosso poderia lograr. Por qualquer destas vias a negatividade transforma-se em auto-flagelação. Nenhuma sociedade sobrevive e muito menos floresce em tal registo psico-cultural. Portugal necessita urgentemente de um pensamento cordial a seu respeito, de um pensamento crítico sem complacências mas construtivo à medida das possibilidades do país. Em nenhum sector este pensamento é hoje tão urgente como no sector da justiça. Comecemos pelo espectro da auto-flagelação. Apesar de este ter sido o sector da administração pública mais acarinhado pelo Estado nos últimos trinta anos é, neste momento, um foco da agitação social; os portugueses não conseguem ver nas alterações ao regime de férias judiciais, subsistema de cuidados de saúde e regalias remuneratórias um justificado risco da perda de qualidade dos serviços de justiça porque são já, entre os europeus, os que dispõem de piores serviços. Entretanto, aumenta a perplexidade face à escandalosa "impunidade" (ainda que formalmente explicável) de alguns poderosos ou figuras públicas, agora, de forma paradigmática, no caso "Fátima Felgueiras". Este tem sido um dos calcanhares de Aquiles da nossa justiça. Se a corrupção tem vindo a converter-se no problema central da qualidade da nossa democracia, pode dizer-se que a nossa justiça tem sido mais parte do problema do que da solução. A ideia de que o sistema judicial, globalmente considerado, trata de forma privilegiada as pessoas com poder e com dinheiro é fortemente corrosiva para a sua imagem social. Inquietantemente, o problema já não reside apenas em a justiça não ser eficaz na luta contra a corrupção; reside no perigo de os cidadãos começarem a temer que a corrupção possa vir a entrar no próprio sistema judicial. E para além do que capta a atenção mediática, começa a ser notória a debilidade do sistema judicial na repressão de gravíssimas violações dos direitos humanos dos grupos sociais mais vulneráveis ( mulheres, crianças, imigrantes, etc).
Apesar da sua gravidade, o actual momento de crise deve ser vivido como um momento positivo, como alavanca para a elaboração de um contrato social da justiça que garanta a concretização de uma agenda estratégica de reforma. Eis as linhas básicas desse contrato.1- Uma nova politica pública de justiça assente num sistema integrado de resolução de litígios, ampliando os mecanismos extrajudiciais, recentrando o papel dos tribunais na promoção da cidadania e no combate à grande criminalidade com alto potencial técnico e social. No futuro, os tribunais não devem ter um papel tão central, como têm hoje, na resolução dos litígios de massa, como são as acções de dívidas, os crimes de condução em estado de embriaguez ou sem habilitação legal. 2- Uma nova cultura judiciária que permita colocar a justiça ao serviço do aprofundamento da democracia, impedindo-a de transformar os casos em que os direitos das pessoas ou da sociedade estão gravemente ameaçados numa sucessão cegamente formalista de requerimentos, despachos, informações, junções, aberturas de conclusões, relatórios. Isto passa por um novo modelo de recrutamento e de formação de todos os operadores judiciais. 3- Um novo modelo de avaliação do desempenho, de colocação e progressão na carreira e de prestação de contas do sistema judicial. A construção de indicadores e de padrões de qualidade que permitam a avaliação externa do sistema judiciário é uma questão em debate em muitos países europeus, à qual o sistema judicial português não deve fugir. 4- Um novo paradigma de processo orientado pelos princípios da oralidade, consenso, simplificação dos procedimentos, uso dos meios electrónicos e, ainda, no processo penal, pelos princípios da legalidade/oportunidade mitigada, da justiça restaurativa, do encurtamento dos prazos da prisão preventiva. 5- Reorganização do mapa judiciário que consagre a agregação/extinção de pequenas comarcas, a especialização dos tribunais judiciais, a criação do círculo judicial como matriz organizacional e centro de serviços jurídicos e de gestão de recursos humanos e financeiros do sistema. 6- Reforma do acesso ao direito e à justiça. Um novo figurino institucional de informação, consulta e patrocínio judiciário em que os advogados sejam recrutados por concursos públicos temporários e estejam vinculados, com alguma continuidade, às funções do regime de apoio judiciário.7- Experimentalismo. As reformas devem ser introduzidas a título experimental e, uma vez avaliadas, tornadas definitivas.
Contra as carpideiras da auto-flagelação, garanto que tudo isto está ao nosso alcance.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos