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14-07-2016        Público

Flexibilização, trabalho “atípico”, outsourcing, subcontratação, empresas em rede, trabalho temporário, falsos “recibos verdes”, subemprego? Todas essas fórmulas parecem ultrapassadas perante uma realidade sistémica que está a restruturar o trabalho humano na escala global. É uma nova lógica onde direitos laborais e sindicatos são termos banidos do novo léxico do “empreendedorismo”. É o trabalho-mercadoria no seu estado mais degradado. O baixo custo dos salários conjuga-se hoje com a facilidade de mobilidade e deslocalização na “sociedade líquida” em que vivemos. Líquida, mas comandada por forças muito sólidas e poderosas: 1) trabalho barato; 2) meios de produção e habitat adequados; e 3) facilidade de escoamento dos produtos, são as condições “ideais” para a rentabilização dos grandes investimentos. É este o resultado das grandes “reformas” que a economia neoliberal tem vindo a promover nas últimas três décadas.

Um exemplo “português” pode ser ilustrado com a produção agrícola de frutos vermelhos no Sudoeste alentejano. Calcula-se que neste momento existam cerca de 1500 hectares de estufas só no concelho de Odemira, e o negócio tem prosperado tão rapidamente que as empresas de fruticultura aí instaladas tencionam multiplicar esta área para o dobro até ao final da década. Segundo o vice-presidente da Lusomorango, uma sociedade anónima que funciona como organização de produtores, a faturação passou de cinco milhões de euros em 2005 para 36,8 milhões em 2014. 90 por centro da exportação de framboesa situa-se naquele concelho, e, somados os vários frutos vermelhos produzidos em estufas, ultrapassou os cem milhões de lucro em 2015. Um dos membros do grupo chama-se Maravilha Farms, firma constituída em 2007 com sede em São Teotónio, e que pertence à Reiter Afilliated Companies, multinacional americana, da Califórnia – a maior produtora do universo Driscoll’s, também acionista da Lusomorango. Um dos seus representantes reconhece as condições paradisíacas que encontrou na região: “o clima ameno, entre Sines e Lagos, e a abundância de água de grande qualidade” (veja-se artigo no PÚBLICO, 03/06/2015).

Para lá do inegável impacto na economia portuguesa, no que toca ao emprego a maioria dos postos de trabalho criados tem vindo a ser ocupada por imigrantes. Mas não são exatamente imigrantes no sentido tradicional, porque não procuram fixar-se, antes integram os circuitos globais da força de trabalho barata e sazonal. Embora os números sejam difíceis de conferir (até porque a cobertura legal, quer de trabalhadores quer das empresas fornecedoras é muito duvidosa), sabe-se que no ano de 2013, a população estrangeira no concelho de Odemira já correspondia a 12,8 por cento dos residentes. Entre 2008 e 2013 o número de imigrantes aumentou exponencialmente, sendo os “asiáticos” e “outros países” a grande maioria. Entre eles temos os búlgaros (34,7%), tailandeses (13,2%) e alemães (12,3%) que já eram a maioria dos registados em 2013. Além disso, o atendimento oferecido pelo Centro Local de Apoio à Integração de Imigrantes (CLAII) revelou entre junho de 2015 e fevereiro de 2016 uma maioria de visitas de nepaleses (com 98 atendimentos), indianos (98) e tailandeses (38), o que deixa antever aquilo que pode constatar-se a olho nu por quem circule pelas povoações do concelho. A população residente em São Teotónio multiplicou quatro a cinco vezes nos últimos anos.

Esta realidade proporciona-nos paisagens sociais sui generis, até com alguns traços exóticos, como nos relatava há uns meses uma reportagem do jornal Expresso: “O que fazem camponeses da Tailândia, na estrada para a Zambujeira do Mar? O que faz um sikh, com o seu turbante e uma cana de pesca, próximo do Carvalhal? Por quem esperam os nepaleses sentados em posição de flor de lótus, ao pôr do sol, junto ao Brejão? Para onde vão os cidadãos bengalis que caminham cobertos de pó próximo da Azenha do Mar? Não estão de passagem. Não são forasteiros. Não são turistas…” (jornal Expresso, 5/12/2015). O impacto local desta pluralidade de origens, culturas, vestuários e comportamentos adquire as mais variadas matizes, desde as mais coloridas às mais sombrias. Num hipermercado em São Teotónio as filas para pagamento espelham este “cosmopolitismo negativo”, provocando nas operadoras de caixa, sobretudo se for uma sexta-feira ao fim da tarde, gestos de evidente enfado quando, à pergunta “então quantos estrangeiros já atendeu hoje?” respondem, revirando os olhos – “ai, nem me fale!...”. Evidentemente que a contabilidade destas superfícies comerciais reflete um crescimento ao ritmo do aumento dos hectares de terreno plastificado, que cresce nos terrenos que se estendem entre a Zambujeira do Mar e São Teotónio, abeirando-se já da linha limite do planalto até ao vale de Odeceixe. No Verão, são autênticos fornos, tendo ao lado alguns contentores cheios de beliches, realidade a que até as unidades de Turismo Rural da região começam a adaptar-se.

O fenómeno é recheado de efeitos contrastantes. Interfere com tudo o que tem sido apontado como o projeto de desenvolvimento turístico do Sudoeste e Costa Vicentina. Existe um Plano Municipal de Integração dos Imigrantes, coordenado pela Câmara de Odemira, que visa conhecer e acompanhar a inserção dos imigrantes, mas o caráter sazonal da atividade e a rapidez com que as empresas fornecedoras operam, associados à própria condição ilegal e de grande precariedade desta força de trabalho, impedem a sua integração de forma harmoniosa. Como atestam as recentes ações inspetivas da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), multiplicam-se as situações ilegais, como a falta de registos dos tempos de trabalho, empresas fictícias e agências de trabalho temporário sem o respetivo alvará. Mas a dimensão do problema, a sua extensão e o movimento financeiro que o suporta tornam as iniciativas de regulação uma gota de água impercetível num oceano tempestuoso. Os múltiplos interesses (pequenos e grandes) ajudam a esconder o lado obscuro, desde o tráfico ao preconceito.

No trabalho, na habitação ou na rua, os comentários que se ouvem entre as gentes locais são ilustrativos: “vivem amontoados em cubículos”; “os indianos exploram-se uns aos outros”; “aluga-se a casa a um, semanas depois ele subaluga e cobra rendas a uma data deles, mesmo a familiares”; “fizeram beliches em toda a casa, são à volta de dez em cada quarto”; “um grupo deles foram ao berbigão e levaram tudo o que havia”; “se for preciso mandam o ‘controleiro’ buscá-los às 5h da manhã para trabalhar”; “um grupo rodeou uma miúda e quase a atacavam”; “o meu irmão alugou-lhes a casa, pouco depois não havia móveis, não havia nada”; “à noite já se sente o cheiro das pulverizações aqui na praia”; “com os produtos químicos, os frutos do mar, bivalves e a água, está tudo contaminado”; “depois dos cem mil euros que recebeu, quer lá saber do turismo ambiental!...”.

O reverso do sucesso económico – para os grandes investidores e para alguns agentes locais que beneficiam com isso – é a degradação total das condições de trabalho como um novo modelo produtivo. Ao contrário do proletariado do século XIX e primeira metade do século XX, os assalariados “(des)globalizados” do século XXI não possuem identidade coletiva nem capacidade organizativa. Dificilmente este “precariado” pode constituir uma classe. Aliás, a sua condição é mais do que precária; é uma espécie de lúmpen proletariado do século XXI. Forja-se no plano internacional, mas desconhece o significado do termo “internacionalismo”. Perdida a solidariedade operária contra o capitalismo, cresce duzentos anos depois esta “subclasse” sem fronteiras, feita de “subcidadãos” saídos dos despojos da globalização. É isto a “desglobalização” do trabalho. Sejam as mulheres bolivianas em São Paulo, os chineses semi escravizados em Barcelona, os indianos na Inglaterra, os sudaneses em França ou os paquistaneses, tailandeses e nepaleses em Portugal, estes são os novos contingentes que alimentam as grandes cadeias produtivas da economia global. Com a globalização “localizaram-se”, vivendo “exilados” e acantonados em espaços insalubres e degradantes. Onde pára a velha bandeira da OIT – “O trabalho não é uma mercadoria”?...


 
 
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Elísio Estanque



 
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