Assim começa a nossa conversa com Alice (pseudónimo), numa das histórias de vida que recolhemos a propósito da investigação europeia em curso no Centro de Estudos Sociais da Universidade Coimbra.
TRACE, um estudo de cinco anos distinguido pelo Conselho Europeu de Investigação, tem por base a auscultação de pessoas LGBTQI mais velhas. Mas, na verdade, o projeto TRACE é muito mais do que um trabalho académico. É, acima de tudo, uma oportunidade para aprender, sem arrogância, a partir de dezenas de histórias de vidas concretas de pessoas em cujos corpos vemos inscrita a violência decorrente de existir nas margens.
Estamos a falar da geração dos nossos pais e avós, gente como nós, que durante boa parte do seu caminho em ditadura ou já em democracia continuou a viver sob o estigma de ser considerada doente, perversa ou pecadora, ou tudo isto e mais qualquer coisa. Bem sabemos, a opressão de quem sofre tende a acumular-se e nunca acontece sem cúmplices.
Quem nasceu e cresceu antes do 25 de abril de 1974 sabe bem o que é viver sem direitos, sem igualdade, sem liberdade. No caso de Alice, sem amor. Num tom de quem não espera sequer ser ouvida, Alice disse-nos que aquilo que se pensava (porventura ainda hoje?) acerca de mulheres lésbicas levou-a a acreditar que a possibilidade de amar nunca estaria ao seu alcance. Amar, e ser amada, era uma coisa que acontecia às outras pessoas. Amar era um privilégio. Nunca teve uma relação, nunca constituiu família, viveu sempre só. Um “só” onde cabia uma vida inteira em que o telefone não toca, não há um beijo de boa noite, sobram sempre lugares vazios à mesa.
Disse-nos que se socorreu da sua fé em Deus para aguentar a solidão e a tristeza por não ter podido aceder ao que constitui fonte de felicidade e segurança para tantas outras pessoas.
Em Portugal, em meio século, muito mudou e os últimos 51 anos foram verdadeiramente revolucionários. O acesso ao voto para as mulheres, o direito à saúde e educação, a entrada para a União Europeia, a liberdade de imprensa, o casamento igualitário, o crescimento económico, a visibilidade de temas outrora tabu como a interrupção voluntária de gravidez e a violência doméstica saíram do armário e passaram a fazer parte da discussão pública. As leis tornaram-se mais progressistas e a sociedade mais consciente. Em jeito de reparação simbólica, reconhecemos a importância histórica e social de quem abriu caminhos quando tudo estava ainda por fazer. A justiça sobrepôs-se, por fim, à vergonha.
No entanto, e com crescente expressão, vivemos paralelamente tempos de medo e de incerteza. Um mundo globalizado sofre, inevitavelmente, o conhecido efeito borboleta. As guerras “distantes” afetam o preço do pão na padaria do bairro. A crise climática seca a boca de milhares de pessoas, enquanto afoga outras no Mediterrâneo. Podemos conhecer um país da Europa através de um voo de 40€, mas temos dificuldade em pagar a renda de casa.
Com as redes sociais, estamos à distância de um click de amigos e familiares. Ao mesmo tempo, estudos mostram que quanto mais tempo passamos online, mais sós nos sentimos. A solidão, a frustração e a incerteza face ao futuro abrem espaço para aquilo que, no imediato, parece ser a via mais fácil. Sem pensamento crítico, tornamo-nos populistas, caímos na demagogia, reproduzimos clichês estereotipados e frases feitas sem sustentação real. E assim chegamos a um lugar em que cada pessoa está por sua conta, com a empatia a ser substituída por palavras gritadas como meritocracia quando estamos longe de estar em condições de igualdade no ponto de partida. É neste caldo que se torna, enfim, mais tentador procurar culpados do que soluções dignas.
Na velocidade que atropela os nossos dias, a polarização que impede diálogos, destrói pontes e cria falsas equivalências entre verdade e mentira contribui para um ruído ensurdecedor, fazendo-nos esquecer que, enquanto sociedade, partilhamos as mesmas preocupações básicas. É tempo de desacelerar e recolocar as coisas em perspetiva, aprendendo com quem viveu mais. É isto, entre muitas outras coisas, que a nossa investigação com pessoas acima dos 60 anos tem demonstrado: a importância das causas comuns, como a paz, a estabilidade e a saúde; o direito a salários dignos que nos permitam viver e envelhecer, em vez de sobreviver; a possibilidade de amar sem que isso acarrete consigo o medo de morrer; o desejo de que todas as famílias – mas mesmo todas, todas, todas – possam ser reconhecidas e respeitadas em igualdade.
Durante o último ano ouvimos mais de 100 pessoas nascidas entre 1940 e 1965. Estas histórias concretas constituem arquivos vivos de um tempo em que não havia liberdade, em que as normas sociais eram talhadas à imagem de alguns (poucos), remetendo a maioria para a invisibilidade, a mentira e o medo. Escutar todas estas pessoas evidenciou a urgência de preservar a memória, olhar criticamente para o presente e não incorrer nos erros do passado. Ensinou-nos sobre a importância do cuidado coletivo, não apenas no envelhecimento, mas durante toda a vida.
Ouvir quem não herdou a democracia sem antes ter de lutar por ela revelou-nos também muitos dos sintomas de retrocesso a que já estamos a assistir. Essa aprendizagem sobre a democracia a partir da auscultação das pessoas mais velhas despertou em nós um sentido de responsabilidade acrescido, porventura semelhante ao clamor de Mário Cesariny num verso singular: “entre nós e as palavras, o nosso dever falar”. Nós podemos escolher. Podemos escolher não deixar ninguém para trás. Podemos escolher compreender quem é diferente, ouvir e aprender. Podemos escolher contribuir para uma sociedade na qual todas as pessoas, incluindo Alice com quem partilhamos tantas horas de conversa, possam viver em liberdade, amor e paz. Porque, no fundo, nem Jesus esteve sozinho à mesa.