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20-02-2025        Público

O debate de dia 13 de fevereiro na Assembleia foi marcado pela controvérsia em torno de insultos proferidos por membros da bancada do Chega, na sequência de uma intervenção da deputada do PS e ex-secretária de Estado da Inclusão, Ana Sofia Antunes. No âmbito de um debate sobre a inclusão de pessoas com necessidades específicas no ensino superior, os ânimos exaltaram-se após Diva Ribeiro, do Chega, com o microfone aberto, ter acusado a ex-secretária de só tomar a palavra sobre temas relacionados com a deficiência. Na verdade, essa acusação não resiste a uma breve retrospetiva que deixa bem patente a diversidade de temáticas trazidas ao plenário da assembleia pela deputada socialista.

Dado que a polémica gerou um raro momento de visibilidade política e mediática da deficiência, importa destacar alguns aspetos da forma como está representada politicamente e como luta por direitos.

Em primeiro lugar, é possível ler o incómodo suscitado pela intervenção de Ana Sofia Antunes pela raridade de termos pessoas com deficiência intervindo assertiva e combativamente em lugares de poder (antes dela, apenas Jorge Falcato, pelo Bloco de Esquerda, ocupou uma posição semelhante). A presença de uma pessoa cega num cargo de poder desafia a tendência histórica de associar a deficiência à marginalização, ao assistencialismo e à desqualificação como "não normal". A alusão de Diva Ribeiro à deficiência de Ana Sofia Antunes, a propósito daquilo que seria uma monomania política, cumpre a função de a “colocar no seu lugar”, isto é, de lhe relembrar do seu suposto lugar subalterno enquanto pessoa com deficiência. Esse comportamento pode refletir um ressentimento face ao seu poder e reconhecimento social como deputada, vistos como incompatíveis com a sua deficiência.

Num segundo lugar, coloca-se a questão de uma representante parlamentar intervir sobre um tema em relação ao qual tem um estreito vínculo biográfico. Ainda que nestes tempos sejamos alertados para os perigos do exclusivismo de quem determina que só o pessoal é político, seria absurdo ignorar os méritos democráticos, conquistados nas últimas décadas, de políticas informadas por experiências e pertenças pessoais. Neste particular, Ana Sofia Antunes não apenas é uma pessoa com deficiência como também tem uma relevante biografia política na luta pelos direitos das pessoas com deficiência. Tendo presidido à Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal e integrado coletivos como os (d)Eficientes Indignados, o percurso de Ana Sofia Antunes inscreve-se de forma significativa na luta das pessoas com deficiência no Portugal democrático.

De facto, a história da democracia portuguesa fez-se também com a afirmação dos direitos das pessoas com deficiência, e com a recusa da “generosidade imposta” — um modelo baseado na compaixão e no assistencialismo. A construção de políticas que deem primazia às reais necessidades das pessoas com deficiência deve alinhar-se com o apelo a “nada sobre nós sem nós” — mote do movimento internacional das pessoas com deficiência — e com a aspiração de que a sociedade se reinvente a partir da diversidade funcional.

Em terceiro lugar, coloca-se a questão de entendermos a Assembleia da República enquanto espaço de representação da diversidade da população portuguesa. Segundo dados dos Censos de 2021, 10,9% da população residente em Portugal, com 5 ou mais anos, tem pelo menos uma incapacidade (1.085.472 pessoas). O facto de em 230 parlamentares termos apenas uma deputada com deficiência que faz da sua biografia política um tema relevante da sua atuação exprime uma sub-representação que necessariamente apela a que fale da deficiência, se não incessantemente, pelo menos “as vezes que entender”. A sub-representação das pessoas com deficiência na política portuguesa não é apenas uma questão de números, mas também de poder discursivo.

É graças ao trabalho de ativistas e/ou de pessoas que desempenharam funções executivas nas últimas décadas, fazendo da luta pelos direitos das pessoas com deficiência também a sua causa, como é o caso da deputada Ana Sofia Antunes, que existe hoje um património crítico considerável, informado por movimentos sociais, por trabalhos académicos e por estruturas partidárias e governamentais. Este património documenta, de forma qualitativa e quantitativa, a evidência de que a exclusão social afeta, de forma desproporcional, a vida da maioria das pessoas com deficiência em Portugal. Se, por um lado, essa leitura crítica expõe as estruturas que instauram vulnerabilidade e violência, por outro, integra uma dinâmica de resistência transformadora que importa considerar.

A crescente relevância do debate em torno da deficiência em Portugal tem resultado da intervenção articulada de várias instâncias. Entre elas, destacam-se os movimentos sociais de pessoas com deficiência, as normativas internacionais que, refletindo décadas de lutas, têm enfrentado o capacitismo e a produção académica comprometida com os direitos humanos. Paralelamente, temos assistido a um crescente reconhecimento, tanto por parte de partidos políticos como de responsáveis por políticas públicas, da urgência de enfrentar as estruturas que historicamente perpetuam essas dinâmicas de exclusão. Como afirmava Steven Lukes a outro propósito, “qualquer forma de ver é também uma forma de não ver”. O percurso de Ana Sofia Antunes testemunha como a diversidade de perspetivas se fortalece ao incorporar múltiplas experiências, rompendo com a invisibilidade historicamente imposta às pessoas com deficiência.


 
 
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Bruno Sena Martins
Fernando Fontes



 
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