Segundo a da proposta de revisão do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), o modelo pedagógico e científico contemporâneo baseia-se “num sistema binário”, dividido entre universidades e politécnicos. Na prática, porém, a dualidade do sistema tem-se extinguido nas últimas décadas. A criação de universidades politécnicas, avançada na revisão do RJIES, reflete mais uma forma de se diluir uma dicotomia que merece ser preservada.
O sistema binário existe porque reflete experiências e práticas distintas. Caso a distinção entre aqueles dois tipos de instituições académicas seja diluída, corre-se o risco de se comprometer o espírito do novo artigo 2.º do citado regime – como o de toda a tradição universitária – que se pauta pelo “respeito pela liberdade de pensamento e juízo crítico, a procura do conhecimento como um fim em si mesmo.”
O valor intrínseco do conhecimento pelo conhecimento pouco tem sido valorizado ou até invocado, como que se tratasse de um resquício de uma tradição ultrapassada. Na apresentação do RJIES em formato “Powerpoint”, no passado dia 6 de fevereiro, a revisão justificou-se como forma de promover o desenvolvimento e “a procura do conhecimento e a investigação aplicada.” De tal maneira preponderante é o apelo ao crescimento e à aplicabilidade, assim como à fusão de universidades e politécnicos, que apenas um determinado tipo de saber e conhecimento acabam valorizados. No seguimento dessa lógica, práticas como a de estudar Gil Vicente, especializar-se em Eric Arthur Blair ou ainda depreender um teorema matemático são desconsideradas. Corrija-se então a terminologia, pois não serão universidades politécnicas a ser criadas, mas politécnicos universitários.
Dito isto, a aquisição de competências vocacionais prepara pessoas para um mercado de trabalho cada vez mais especializado. Aprendizagem centrada na aplicabilidade trata-se de uma necessidade consensual e essencial. A própria universidade, enquanto instituição histórica, também assumiu essa função, embora não fosse o seu desígnio distintivo. A obtenção de certo conhecimento universitário é a condição necessária para o desempenho de determinadas profissões, tais como Medicina e Direito. Também a busca por conhecimento como um fim em si mesmo facilita a obtenção de valências relevantes para profissões várias, tais como a argumentação, pensamento crítico e capacidade de investigação autónoma. No entanto, competências adquiridas representam corolários do estudo universitário. Por outras palavras, não é a aquisição dessas valências que justifica, em última instância, a preservação de um espaço universitário e que o distingue de outras instituições, mas a procura de conhecimento enquanto um fim em si mesmo.
Resta então fundamentar as razões para um espaço centrado no conhecimento potencialmente desprovido de aplicabilidade, sobretudo “para uma sociedade em constante mudança”, outro truísmo invocado na apresentação do RJIES. O fundamento começa logo por desmontar a trivialidade da alegada mudança a que estamos permanentemente sujeitos. O que é que realmente mudou? O mundo permanece desigual, a guerra persiste na Europa, os eleitores – segundo múltiplos comentários – almejam líderes fortes e potências digladiam por influência. Ceticismo, conhecimento ou reflexão crítica requerem espaços específicos que não podem ficar reféns de um denominado conhecimento aplicado. Se isso não bastasse, pensamento desprovido de quaisquer contrapartidas práticas combate a alienação histórica e social. Monumentos antigos, obras seminais, tendências recorrentes, filosofias marginais e teoremas por descobrir deixam de se transformar em meras modas superadas ou instrumentos ao serviço do progresso, mas testemunhos intemporais daquilo que nos une enquanto sociedade, permitindo-nos ainda imaginar e dar significado ao que existiu, existe e, talvez, virá a existir.