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20-11-2024        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

Quem, como eu, assistiu ao nascimento do Convenção da ONU sobre a biodiversidade, no Rio de Janeiro, em Maio de 1992, e acompanhou o seu desempenho ao longo dos últimos trinta anos, plasmado nas sucessivas COPs (Conferência de Partes), é natural que observe com crescente distância e cepticismo cada nova COP (sempre com a gritante ausência dos EUA). Por coincidência, estive em Cali, Colômbia, durante o período em que se realizou a COP 16 (segunda quinzena de Outubro). O objectivo da minha visita era confraternizar com alguns dos movimentos sociais que organizaram a grande explosão social de resistência em 2019, a que estive muito ligado, nomeadamente Puerto Resistência (antes conhecido como Puerto Rellena). Foi aí que foi erigido pela população em luta o monumento, anti-monumento, Monumento a la Resistencia, uma escultura construída colectivamente, com quase dez metros de altura, que representa a mão do Kay Kimi Ktachi, deus Maia da guerra, que empunha o letreiro “Resiste”. O monumento acaba de ser reconhecido pelo governo colombiano como monumento nacional, o que talvez ajude a protegê-lo das várias tentativas das forças de direita e de extrema direita para o derrubar.


A COP 16 tinha a seu favor o facto de ser realizada no país cujo presidente tem a mais informada e exigente consciência do iminente colapso ecológico e onde os movimentos e organizações, tanto indígenas como afro-descendentes (a vice-presidente, Francia Marquez, é afro-descendente), têm uma sofrida e reflexiva vivência da guerra do actual modelo de desenvolvimento económico contra a natureza. Não surpreende que o tema geral da COP fosse “Paz com a Natureza”.

Se olharmos para as organizações do Norte global que têm participado e dominado neste tipo de reuniões, é fácil concluir que a COP 16 foi mais do mesmo, uma vez que a prioridade tem sido sempre a de preservar a continuidade do capitalismo global e de encontrar na crise ecológica novas oportunidades de negócio. Podem-se fazer cedências, mas são mais retóricas do que reais. Algumas são, de facto, um exercício de hipocrisia, como, por exemplo, a substituição da designação “bonos de carbono” por “bonos da natureza”. Mas como acontece com outros eventos internacionais, a realidade ou eficácia da COP 16 não se pode reduzir ao que oficialmente (não) se discutiu e (não) se decidiu. Inclui tudo o que ocorreu ou tornou possível dentro e fora dos marcos institucionais. Esta foi a “COP de la gente” devido à participação massiva das organizações e movimentos populares (a “zona verde” da COP), que utilizaram a COP para fazer avançar as suas agendas nacionais e internacionais. Estiveram particularmente activos os movimentos e organizações indígenas e afro-descendentes e, no seu seio, foi notável a participação das mulheres. É o caso da Rede Internacional de Mulheres Indígenas sobre a Biodiversidade e da Rede de Mulheres Indígenas de Biodiversidade para a América Latina e as Caraíbas.


No plano institucional, a maior vitória foi certamente a do reconhecimento oficial da contribuição dos povos afro-descendentes na conservação da biodiversidade, o que a vice-presidente da Colômbia caracterizou como uma medida histórica de justiça étnico-racial. É uma medida com um simbolismo especial, uma vez que Cali é, depois de Salvador (Brasil), a maior cidade negra da América Latina. Esta vitória ocorreu no âmbito do acordo mais amplo sobre o artigo 8J da Convenção (conhecimento tradicional, inovações e práticas): foi aprovada a criação de um órgão subsidiário para os povos indígenas e comunidades locais, ligando a protecção da biodiversidade à protecção das comunidades locais que mais cuidam dela.


O mais importante foi, no entanto, o modo como se articularam as diferentes lutas sociais para convergir em exigências que potenciavam a sua unidade e a sua visibilidade e construíam pontes decisivas entre a biodiversidade e a bioculturalidade. Assim, a Convergência Regional do Pacífico Colombiano incluía grupos negros, afro, palenqueros, indígenas, juventudes, mulheres, camponeses, diversas organizações LGBTIQ+, comunidades locais e urbanas, juntas de acção comunal e académicos. No plano internacional, e também por iniciativa da Vice-presidente da Colômbia, aprofundaram-se as relações com os países das Caraíbas e com alguns países africanos, incluindo acordos para a extinção de vistos entre a Colômbia e Moçambique e o Gana.
Os grupos oprimidos que a dominação eurocêntrica moderna (capitalista, colonialista e patriarcal) lançou no outro lado da linha abissal, isto é, na sociabilidade colonial, como tenho proposto nas epistemologias do Sul, aprenderam ao longo de séculos a viver estes acontecimentos com uma hermenêutica de suspeita, e, portanto, a participar com um pé dentro e um pé fora das instituições que lhes são impostas. Os movimentos e organizações indígenas foram particularmente engenhosos ao atribuir à COP 16 o seu verdadeiro nome: COP 532. Ou seja, o número de anos do colonialismo europeu na Abya Ayala. Sendo certo que os povos indígenas não são mais que 6.2% da população mundial, como se explica que 80% da biodiversidade esteja concentrada nos seus territórios e nos territórios de camponeses pobres? Se, ao longo de séculos, foram eles os guardiães da biodiversidade, não deveriam ser eles a dirigir a convenção da ONU sobre a biodiversidade e a propor as medidas necessárias para salvar o que ainda não foi perdido? Não são eles os especialistas? Porque é que estas reuniões são dirigidas e organizadas segundo a matriz cultural e em obediência aos interesses daqueles que foram e continuam a ser os maiores responsáveis pela destruição da biodiversidade? Estas perguntas estão fora do debate político autorizado a circular nos corredores da COP. Pertencem ao debate civilizatório com que os povos indígenas, afrodescendentes e camponeses querem condicionar o debate político e o fazem com crescente insistência. Por isso, os movimentos indígenas que impulsionam o “Plano de Vida Global”, apesar de celebrarem a vitória no âmbito do Artigo 8J, consideram-na insuficiente “porque nós, os povos do mundo, continuamos a lutar para que as nossas nacionalidades originárias tenham voz e poder de decisão próprio nos cenários globais e enquanto governos indígenas”.


A ideia da COP 532 visou fortalecer a legitimidade das lutas sociais que estão actualmente em curso na Colômbia. Três áreas merecem particular destaque: a terra, a educação e o direito. A luta pela recuperação de terras está em curso em toda a região e particularmente na região do Cauca, onde se realizou a COP. O Movimento das Autoridades Indígenas do Sul- Ocidente (AISO) tem vindo a recuperar milhares de hectares de terra com o objectivo de promover a agricultura indígena e camponesa. Na área da educação própria, os povos misak, nasa e pijaos têm vindo a exigir do governo colombiano uma maior atenção aos processos educativos interculturais. O Taita (autoridade) Jesús Maria Aranda, da comunidade misak, afirmou, como objectivo da educação própria, “que os processos de vida dos povos perdurem para as gerações futuras, o que implica a existência dos espaços de sempre e para sempre. A Universidade Misak ou Ala Kusrei ya Misak Universidad é muito importante. A Universidade Misak articular-se-á com o sistema educativo oficial de acordo com os princípios do Sistema Educativo Indígena e respeita o mandato originário e a dignidade dos povos, nos termos do Direito Mayor [direito originário]”.

A citação do Taita Jesús faz a ponte com a terceira área de luta: o reconhecimento do direito indígena originário. Esta luta tem hoje uma actualidade especial, uma vez que, 33 anos depois de ser estabelecida na Constituição Política de 1991 (art. 246), está a ser discutida no Congresso colombiano “a coordenação entre a jurisdição especial indígena e o sistema judicial nacional” através de um projecto de lei de coordenação interjurisdicional. Este projecto já foi objecto de uma consulta prévia, livre e informada nos termos do direito internacional sobre os povos originários. Os objectivos da lei são amplos: “Estabelecer um roteiro que reforce o reconhecimento dos sistemas de justiça próprios das populações indígenas e promova o diálogo autoridade-autoridade; avançar com cenários de coordenação com todo o apoio e segurança jurídica necessários; criar uma base e regras gerais para que diferentes formas de justiça possam trabalhar em conjunto. Não se pretende unificar ou tornar iguais os sistemas de justiça dos 115 povos indígenas do país; respeitar sempre a autonomia e a diversidade dos povos indígenas, reconhecendo a riqueza cultural da nação; compilar a jurisprudência dos tribunais superiores sobre a forma de coordenar a justiça indígena com a justiça ordinária e as regras para determinar quando se aplica a jurisdição indígena; estabelecer a mediação linguística obrigatória e a formação de intérpretes; fortalecer o dever de apoio técnico, científico e jurídico entre as autoridades, operadores e colaboradores do Sistema Judicial Nacional e as autoridades dos povos indígenas; fortalecer as instâncias existentes de coordenação entre a justiça indígena e o sistema judicial nacional; atender e incluir as demandas do movimento indígena e as posições dos órgãos judiciais.”

“Todas essas questões foram discutidas e acordadas na Comissão Nacional de Coordenação do Sistema Judicial e da Jurisdição Especial Indígena (COCOIN), principal espaço de diálogo sobre o tema, juntamente
com a Mesa Permanente de Concertação dos Povos Indígenas”. Mesmo assim, é de prever que a aprovação deste projecto de lei seja particularmente controversa e turbulenta. Mas a verdade é que a Colômbia, durante a presidência do Presidente Gustavo Petro, está a ser o país da América Latina onde os povos originários têm mais razões de esperança no reconhecimento da sua auto-determinação e do seu direito próprio. Seria a mais plena realização da COP 532.


 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos



 
temas
lutas sociais    biodiversidade    ONU