A simples sugestão de um diálogo entre marxistas e cristãos causa estranheza, desconforto e até raiva no senso comum. Estranheza e desconforto (e muito menos raiva) que estão ausentes quando se encara o diálogo – ou mesmo a justaposição – entre o ser-se cristão e o ser-se liberal, conservador ou nacionalista.
Esse pré-juízo condenatório é uma expressão dos discursos dominantes, há muitas décadas, quer no campo cristão quer no campo marxista. São discursos produzidos e disseminados pelos polos conservadores de cada uma das duas culturas e esse tem sido um dos dispositivos ideológicos que cada um deles usa para hegemonizar o respetivo campo. Para esses entendimentos conservadores, cristianismo e marxismo são inimigos um do outro e estão convocados a erradicar-se um ao outro. A hegemonia assim conquistada permitiu confundir o dominante com o todo e alimentou, ao longo de décadas, o senso comum de incompatibilidade sem remissão entre “o cristianismo” e “o marxismo”.
Essa estratégia de erradicação mútua tem assentado em argumentários simétricos. O marxismo é condenado pelo cristianismo porque é “inimigo da religião” e, do mesmo passo, o cristianismo é condenado pelo marxismo por constituir o “ópio do povo”; o marxismo é refutado pelo cristianismo por não ser mais que um materialismo ateu e militante e, simetricamente, o cristianismo é acusado pelo marxismo como um espiritualismo desencarnado; o cristianismo recusa a centralidade da luta de classes – e, com ela, de uma visão conflitualista da sociedade em que a violência é tida como elemento natural – ao mesmo tempo que o marxismo aponta ao cristianismo a sua função de cúmplice da exploração e da opressão.
Contra esta blindagem das culturas, sigo a advertência de Boaventura de Sousa Santos de que todas as culturas são incompletas e internamente compósitas e heterogéneas. A desconstrução do fechamento de cada cultura no seu discurso hegemónico é um imperativo de seriedade e de busca de suportes para a emancipação. Isso implica, como tem vincado este autor, diferenciar o que, em cada cultura, são os seus elementos progressistas, emancipadores e contra-hegemónicos do que são os seus elementos conservadores e regulatórios. A busca de equivalentes progressistas em cada uma das culturas é o que dá razão de ser a um diálogo entre elas com o sentido de dar solidez a lutas pela libertação das pessoas e das comunidades.
Neste sentido, é da maior utilidade a sugestão de Michael Löwi de recorrer ao conceito de “afinidades eletivas” que Max Weber usou para descrever a relação entre protestantismo e capitalismo, apontando as ressonâncias dos ensinamentos do protestantismo no ethos da empresa capitalista. Assim, Löwi identifica seis áreas de afinidade geral entre marxismo e cristianismo (sobretudo na sua versão católica): a) libertação dos oprimidos; b) valorização do pobre como vítima de uma relação injusta; c) internacionalismo/catolicidade; d) ênfase na comunidade contra o primado do individualismo egoísta; e) crítica da lógica da reificação e acumulação; e f) esperança num futuro de justiça e liberdade.
Ora, lembra Löwi, para que uma afinidade virtual se torne realidade efetiva, é necessária uma conjuntura histórica com traços específicos (“uma constelação peculiar de eventos”). Com este pressuposto, Michel Löwi identifica a década de sessenta como um momento de concretização de afinidades eletivas entre cristianismo e marxismo. Nela convergiram dinâmicas de transformação relevantes quer do catolicismo quer do marxismo que potenciaram essa concretização. No primeiro, avultam a renovação teológica advinda do Concílio Vaticano II e a significativa criação do Secretariado para o Diálogo com os Não Crentes. No lado marxista, registou-se a crise do marxismo institucionalizado e a crítica do estalinismo operada pelo XX Congresso do PCUS, que alimentaram a emergência de diversas correntes críticas nesse campo.
Desta constelação peculiar de eventos resultaram dois grandes desenvolvimentos em que a concretização das afinidades eletivas se materializou. O primeiro foram as três rondas de diálogo entre marxistas e cristãos, na Europa, organizadas pela Paulus Gesselshaft, dirigida por Erich Kellner, e em que marcaram presença nomes grandes dos dois campos: Rahner, Metz, Calvez e Girardi no campo católico e Garaudy, Bloch ou Lombardo Radice no campo marxista.
O segundo grande desenvolvimento resultante daquelas transformações foi naturalmente a Teologia da Libertação e a sua disseminação no sul global, sobretudo na América Latina. Não cabendo aqui uma análise minimamente detalhada da ascensão e ulterior perda da Teologia da Libertação, deve ainda assim ser sublinhado que, mais que um diálogo entre diferentes, ela se traduziu numa assunção da leitura marxista das contradições sociais como suporte analítico para um mais robusto compromisso cristão com a transformação social guiado pelo Evangelho.
O nosso tempo é, em minha opinião, um segundo momento histórico de densificação das afinidades eletivas entre marxismo e cristianismo.
Isso decorre, desde logo, da radicalização das características básicas do capitalismo no que se vem chamando o capitalismo tardio. É essa radicalização que marca, em primeiro lugar, a expansão do capitalismo, com a globalização das forças produtivas e das relações de produção e a financeirização da economia global. Em segundo lugar, essa radicalização alimenta-se de uma imparável predação de recursos naturais gerando a vertigem da catástrofe climática e expondo a flagrante desigualdade de responsabilidades e de capacidades de resposta ao desafio climático. E é também de radicalização do capitalismo que se trata quando assistimos à configuração de uma nova fase na relação entre trabalho e capital (com a generalização da precariedade, a segmentação do trabalho e o consequente enfraquecimento dos sindicatos, a uberização, etc.).
A força destes sinais dos tempos impõe respostas aos cristãos. Identifico três que se têm vindo a afirmar e que constituem, em si mesmas, suportes para o diálogo com o universo marxista. Em primeiro lugar, o reconhecimento da existência de “pecados estruturais” ou de “estruturas do pecado”. Tendo sempre rostos concretos e gestos pessoais, o pecado, enquanto negação de Deus no outro, ganha corpo no funcionamento “normal” de estruturas como o comércio internacional, a divisão internacional do trabalho, a globalização da indiferença, etc. Em segundo lugar, a Doutrina Social da Igreja vem tornando mais inequívoca a sua condenação da economia e da organização social capitalistas: “esta economia mata”, escreveu Francisco na Exortação Evangelii Gaudium. O terceiro tópico relevante é indiscutivelmente a acentuação, no ensinamento mais recente da Igreja Católica, do lugar dos pobres e do cuidado da casa comum como categorias teológicas. Textos como Laudato Si’ ou Fratelli Tuti, vindos da Igreja, dão voz a um pensamento crítico agregador em que muitos marxistas se reveem.
Adicione-se, por fim, a este campo de afinidades eletivas o surgimento de novos desafios à justiça, sentidos tanto pelo marxismo quanto pelo cristianismo: a justiça de género, a justiça racial, a justiça cognitiva e a consciência partilhada por marxistas e por cristãos da responsabilidade histórica dos seus universos de referência na estruturação de uma ordem patriarcal e colonial cujos traço mais fundos persistem e que se impõe enfrentar com sentido de libertação.
Foi neste contexto que nasceu a DIALOP, uma plataforma de diálogo entre cristãos e marxistas europeus. A visita, em 2014, de uma delegação da transform! (uma rede de 39 organizações da esquerda radical de 23 países, associadas ao Partido da Esquerda Europeia) ao Papa e o desafio então feito por Francisco a que se encontrassem suportes para uma ação comum em favor dos pobres e da casa comum, foi a causa imediata da criação da DIALOP. Mas a própria visita foi consequência de uma trajetória anterior de diálogo, animado, entre outros, por dirigentes marxistas como Walter Baier ou Cornelia Hildebrandt e por militantes católicos como Luisa Sello e Franz Kronreif.
É, como tem de ser, uma experiência de diálogo que arranca do reconhecimento da incompletude das duas abordagens. Para esse diálogo, cada campo traz o que completa o outro: economia política, dimensão estrutural e centralidade da luta como motor de mudança, do lado marxista; atenção ao rosto concreto do outro, cultura do cuidado e do amor e permanente abertura utópica, do lado cristão. Afinidades eletivas e desafios recíprocos. Não é assim o diálogo que transforma?
[Este texto corresponde à Intervenção de José Manuel Pureza no seminário “In Search for a Common Future in Solidarity – DIALOP as a platform of dialogue between Christians and Marxists”, organizado pelo Grupo de Trabalho POLICREDOS | Religiões e Sociedade, do CES-UC]