O momento em que surge o livro Espectros de Batepá de Inês Nascimento Rodrigues não podia ser mais feliz. De facto, a proposta de Fernando Medina de criar em Lisboa um Museu dos Descobrimentos despertou na esfera pública portuguesa uma polémica acesa. Começámos a perceber, muito graças aos movimentos de portugueses negros e portuguesas negras, que a “semântica” das palavras que compõem as narrativas da memória e os discursos da História importa. Estas palavras configuram a substância das verdades que se disputam nos territórios da historiografia e da memória, revelando hierarquias de poder e lugares de fala diversos, cruzados, arduamente conquistados ou negociados de formas complexas, bem como os fantasmas – os acontecimentos omitidos e ocultados, as pessoas extintas, silenciadas, invisibilizadas – e a forma como estes fantasmas nos devem assombrar no âmbito de uma ética da memória. Erguem-se as vozes outrora espectrais de negros e negras portugueses para dizer “Não a um museu contra nós” e reforça-se a contraofensiva dos guardiões de uma identidade nacional ou de uma comunidade que se imaginou com base na glória da conquista dos mares e do lusotropicalismo.
Abdicar desta memória, pode ser, para muitos e muitas, reduzir a nação a um fantasma de si mesma. Inês Rodrigues escreve para aqueles e aquelas que querem viver criticamente com os seus fantasmas e torná-los parte da memória e identidade coletivas, enquanto parte da História e enquanto sujeitos vivos. Importa tornar presente aquilo que deslocámos para a esfera dos silêncios, mas que tem tanto peso quanto as vítimas e os perpetradores – e os perpetradores-vítimas – dos múltiplos Batepás do colonialismo português, incluindo a escravatura. Importa resgatar a violência indizível que irrompeu em S. Tomé e Príncipe em 1953 ou em Wiriamu em 1972, mas, mais do que isso, perceber que o colonialismo era feito, criava e alimentava-se desta violência extrema, constante e estrutural, que hoje encontra prolongamento nas relações sociais, em particular no racismo. Um racismo omnipresente num país que não aceita as minorias racializadas e não admite sequer confrontar-se com a possibilidade de ter sido e ser racista, nas instituições e no quotidiano. Inês Rodrigues traduz para um texto muitíssimo bem escrito e refletido os fantasmas ocultos na narrativa cómoda de tantos e tantas. Invocando uma das formas de tortura usadas em Batepá, trata-se de “esvaziar o mar”. Esta ideia é uma metáfora profundamente trágica que sublinha a necessidade da memória constante da profunda violência colonial para que “o mar” dos discursos gloriosos do império português finalmente se esvazie.
A fala dos fantasmas é feita de incorporações subjetivas e apropriações diversas, em eixos intrincados de poder e resistências, como as narrativas da memória e da História que permitem compor. É justamente por mostrar a complexidade destas tramas que este livro se torna indispensável para quem reflete sobre a memória, a História, as matérias simbólicas de que são feitos os múltiplos reais que sustentam as identidades e as dinâmicas políticas e sociais. Inês Rodrigues constrói “um arquivo da imaginação do massacre”, enquanto história de vítimas, mártires ou heróis, enquanto sobrevivência, ou convivência com um trauma herdado, no caso dos filhos do massacre, ou da geração da pós-memória. A partir de S. Tomé, Inês Rodrigues traz à luz as teias complexas do colonialismo e da sociedade colonial portuguesa, com as suas heterogeneidades, hierarquias, alianças e negociações, um retrato repleto de matizes e questionamentos, no que diz respeito aos poderes coloniais e aos movimentos de independência, às identidades e aos sujeitos, às narrativas que os sustentaram e às dinâmicas de inclusão e exclusão que as permeavam, de ambos os lados da fratura colonial. O livro de Inês Rodrigues constitui um guia para, nas palavras dela mesma, “iluminar as formas através das quais estas figuras espetrais do passado permitem compreender o presente e mudar o futuro”.