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04-08-2011        Visão

As privatizações são o objectivo central do governo. Porquê esta centralidade se as receitas que elas geram são uma migalha da dívida? Porque o verdadeiro objectivo delas é destruir o Estado Social, eliminar a ideia de que o Estado deve ter,  como função primordial, garantir níveis decentes e universais de protecção social. Sujeitar os serviços públicos à lógica do mercado implica transformar cidadãos com direitos em consumidores com necessidades que se satisfazem no mercado. Cada um  consome segundo as suas posses. Para os indigentes, o Estado e as organizações de caridade garantem mínimos de subsistência. Mesmo assim, há privatizações e privatizações, e a privatização da água é a mais escandalosa de todas porque ela põe em causa o próprio direito à vida. 

A água é um bem comum da humanidade e o direito à água potável, um direito fundamental. Um direito de que  está privada cerca de um quarto da população mundial (1,5 biliões de pessoas). Todos os dias morrem 30.000 pessoas por doenças provocadas pela falta de água potável. As alterações climáticas fazem prever que este problema se agravará nas próximas décadas. Considerando que quase metade da população mundial vive com menos de 2 dólares por dia, e, por isso, sem condições para aceder ao mercado da água, tudo recomendaria que as medidas para garantir o acesso  à agua fossem orientadas pela ideia do direito fundamental e não  pela ideia da necessidade básica. 

Apesar disso, desde a década de 1980, a onda neoliberal fez com que muitos países privatizassem os sistemas de  água. As consequências foram desastrosas: as tarifas subiram mais de 20%; o investimento na manutenção das infra-estruturas diminuiu; a qualidade da água piorou; as poucas multinacionais que controlam o mercado mundial, ao preferirem as empresas do seu grupo, levaram à falência as empresas nacionais que forneciam os sistemas municipais; houve conflitos violentos (por exemplo, na África do Sul) quando a empresa fechou as torneiras a quem não pagava as contas; foram denunciadas cláusulas danosas nos contratos, conflitos de interesses e corrupção. Perante isto, os cidadãos de muitos países e cidades organizaram-se para impedir a privatização ou para lutar contra ela. Ficou famosa "a guerra da água"; em Cochabamba (2000); em vários países, as lutas populares mudaram as Constituições para garantir a água como bem público; iniciativas de cidadãos levaram à substituição das parcerias público-privadas por parcerias público-públicas (entre governos centrais, regionais e municipais).
Este movimento não se confinou ao mundo menos desenvolvido. Por toda a Europa cresce o movimento  contra a privatização da água e ele é forte nos países que tutelam hoje a política portuguesa, a França e a Alemanha.  Ao fim de 25 anos, Paris remunicipalizou a gestão da água em 1 de Janeiro de 2010. O mesmo se passou com Grenoble mobilizada pela inovadora associação  Eau Secours.  Na Alemanha numerosas cidades estão a remunicipalizar a gestão da água, e Berlim não quer esperar por 2028 para terminar a concessão à multinacional francesa Veolia. Por tudo isto, o mercado da água entrou em refluxo. Assim se explica que a privatização da água não conste do menu das privatizações da troika.

Não é a primeira vez nem será a última que uma política considerada inovadora pelo governo português, é, de facto, uma  política anacrónica, fora do tempo. Mas como a cartilha deste governo tem uma lógica temporal muito própria (varrer da memória dos portugueses o 25 de Abril e o Estado Social que ele promoveu) não éd e esperar que ele se envergonhe do seu anacronismo. Só os portugueses o poderão travar através de lutas de democracia directa e participativa, tais como protestos, organizações cívicas, petições, referendos, e da litigação judicial. Para eles, sim, será importante saber que a luta contra a privatização da água tem tido uma elevada taxa de êxito. O grupo Águas de Portugal não é um bom exemplo de gestão mas a solução não é privatizá-lo; é refundá-lo.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos