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06-03-2014        Visão

Escrevo esta crónica da Índia, onde tenho estado nas últimas três semanas. Na década passada, a Índia foi avassalada pelo mesmo modelo de desenvolvimento neoliberal que a direita europeia e seus agentes locais estão a impor no Sul da Europa. As situações são dificilmente comparáveis mas têm três características comuns: concentração da riqueza, degradação das políticas sociais (saúde e educação), corrupção política sistémica, envolvendo todos os principais partidos envolvidos na governação e sectores da administração pública. A frustração dos cidadãos perante a venalidade da classe política levou um velho activista neo-gandhiano, Anna Hazare, a organizar em 2011 um movimento de luta contra a corrupção que ganhou grande popularidade e transformou as greves de fome do seu líder num acontecimento nacional e até internacional. Em 2013, um vasto grupo de adeptos decidiu transformar o movimento em partido, a que chamaram o partido do homem comum (Aam Aadmi Party, AAP). O partido surgiu sem grandes bases programáticas, para além da luta contra a corrupção, mas com uma forte mensagem ética: reduzir os salários dos políticos eleitos, proibir a renovação de mandatos, assentar o trabalho militante em voluntários e não em funcionários, lutar contra as parcerias público- privadas em nome do interesse público, erradicar a praga dos consultores através dos quais interesses privados se transformam em públicos, promover a democracia participativa como modo de neutralizar a corrupção dos dirigentes políticos. Dada esta base ética, o partido recusou-se a ser classificado como de esquerda ou de direita, dando voz ao sentimento popular de que, uma vez no poder, os dois grandes partidos de governo pouco se distinguem.

Em dezembro passado, o partido concorreu às eleições municipais de Nova Delhi e, para surpresa dos próprios militantes, foi o segundo partido mais votado e o único capaz de formar governo. O governo foi uma lufada de ar fresco, e em Fevereiro o AAP era o centro de todas as conversas. Consistente com o seu magro programa, o partido propôs duas leis, uma contra a corrupção e outra instituindo o orçamento participativo no governo da cidade, e exigiu a redução do preço da energia eléctrica, considerado um caso paradigmático de corrupção política. Como era um governo minoritário, dependia dos aliados na assembleia municipal. Quando o apoio lhe foi negado, demitiu-se em vez de fazer cedências. Esteve 49 dias no poder e a sua coerência fez com que visse aumentar o número de adeptos depois da demissão. Perplexo, perguntei a um colega e amigo, que durante 42 anos fora militante do Partido Comunista da Índia e durante 20 anos membro do comité central, o que o levara a aderir ao AAP: “fomos vítimas do veneno com que liquidámos os nossos melhores, favorecendo uma burocracia cujo objetivo era manter-se no poder a qualquer preço. É tempo de começar de novo e como militante-voluntário de base”. Outro colega e amigo, socialista e votante fiel do Partido do Congresso (o centro-esquerda indiano): “aderi quando vi o AAP a enfrentar Mukesh Ambani, o homem mais rico da Ásia, cujo poder de fixar as tarifas de electricidade é tão grande quanto o de nomear e demitir ministros, incluindo os do meu partido”.

Suspeito que tarde ou cedo vai surgir em Portugal o partido do homem e da mulher comuns. Já tem nome e muitos adeptos. Chamar-se-á Partido do 25 de Abril. Quarenta anos depois da Revolução, será a resposta
política aos que, aproveitando um momento de debilidade, destruíram em três anos o que construímos durante quarenta anos. O 25 de Abril é o nome do português e da portuguesa comum cuja dignidade não está à venda no mercado dos mercenários, onde todos os dias se vende o país. Será um partido de tipo novo que estará presente na política portuguesa, quer se constitua ou não. Se se constituir, terá o voto de muitas e muitos; se não se constituir, terá igualmente o voto de muitas e muitos, na forma de voto em branco. Por uma ou por outra via, o Partido do 25 de Abril não esperará pelo próximo livro de Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia, onde ele explicará como o FMI destruiu o Sul da Europa com a conivência da UE.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos



 
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