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01-02-2014        Le Monde Diplomatique (Ed. Portuguesa)

O necessário debate cidadão sobre os cenários para de «saída» do programa da Troika em Portugal está a ser objecto de uma campanha de intoxicação muito assente num conjunto de informações, umas falsas outras ocultadas, sobre o exemplo irlandês. E se as lições a retirar dele forem sobretudo a renegociação da dívida e a recusa da austeridade?

O recente fim do programa de resgate financeiro irlandês, com a chamada “saída limpa”, tem sido objecto de uma formidável campanha de intoxicação da opinião pública por parte das estruturas de poder europeias e nacionais. Ouvimos de tudo um pouco: de como o programa irlandês foi mais ambicioso nos cortes da despesa, da sua recuperação económica e, sobretudo, das baixas taxas de juro cobradas hoje ao país pela sua dívida pública.

O objectivo é claro. Face aos desastrosos resultados da austeridade europeia, particularmente proeminente nos países sujeito a programas de ajustamento estrutural – Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Chipre - a União Europeia e os diversos governos nacionais precisam de um exemplo de sucesso nacional que sirva o propósito de apontar o falhanço dos programas em curso às particularidades políticas de cada país. Da “falta de vontade” grega à instabilidade política portuguesa. O problema não seria da receita, mas sim dos cozinheiros.

A desmontagem da propaganda quanto à pretensa maior austeridade irlandesa tem sido já brilhantemente desmontada, não na imprensa ou na televisão, mas sim na blogoesfera, nomeadamente através da análise de Hugo Mendes[1]. Os sucessos irlandeses no que toca à consolidação orçamental são pequenos (défice orçamental 10,6% do PIB em 2010 para 7,5% em 2013), a austeridade imposta, medida pelo PIB, é cerca de metade da portuguesa e o crescimento é anémico (0,3% em 2013), com o PNB (Produto Nacional Bruto), medida relevante para o caso irlandês devido ao peso das multinacionais na sua economia, a continuar a cair.

Contudo, as baixas taxas de juro (em torno de 3,5% nos títulos a 10 anos) e as subidas de notação da sua dívida (acima de “lixo”) são sucessos que o governo irlandês pode apresentar, abrindo caminho para a actual “saída limpa”, onde o refinanciamento da dívida é exclusivamente feito através dos agentes privados de mercado, sem qualquer apoio oficial. Para melhor perceber o que está em causa neste sucesso temos que atentar à excepcionalidade do caso irlandês relativamente aos países do Sul da Europa. Ao contrário destes, a Irlanda não acumulou uma extraordinária e insustentável dívida externa durante os anos que precederam a crise. O problema não foi de perda de competitividade no quadro da moeda única, mas sim a euforia financeira da década de 2000, particularmente no seu sector bancário, promotora de uma bolha imobiliária cujo fim se precipitou com a crise financeira internacional.


Renegociar a Dívida, Recusar a Austeridade

A insustentabilidade da dívida pública irlandesa, que deu origem ao resgate oficial, foi assim causada pela nacionalização do Anglo-Irish e recapitalização de outros bancos, provocando um “salto” da dívida pública de mais de 20% do PIB. Esta nacionalização foi feita com o apoio do Banco Central Europeu (BCE), fornecedor de liquidez de emergência a aos bancos agora falidos. No entanto, estes empréstimos do BCE tiveram como contrapartida garantias do Estado Irlandês, através de títulos de dívida (no caso, notas promissórias) emitidos à banca nacionalizada. O salto na dívida pública irlandesa não se prendeu por isso com endividamento incorrido nos mercados, mas sim com endividamento implícito junto do BCE. Estes títulos de dívida tinham uma maturidade curta e juros elevadíssimos (indexados aos títulos de dívida pública irlandesa nos mercados). Depois de um período de carência de juros que terminava em 2013, o esforço financeiro do estado irlandês nos próximos tempos seria brutal, obrigando a novas "ondas" de austeridade. O que, entretanto, se passou durante o ano passado foi uma profunda reestruturação da dívida irlandesa junto do BCE de forma encapotada. Com a liquidação da banca nacionalizada no início de 2013, as notas promissórias foram unilateralmente trocadas por novos títulos de dívida pública, com menos juros e maiores maturidades (até 40 anos). Na prática, embora seja difícil calcular o corte “real” da dívida, esta reduziu-se radicalmente. Tudo com o assentimento do BCE, que irá suportar os custos.

Hoje, a Irlanda beneficia assim de uma dívida mais sustentável o que explica a diferença nas taxas de juro na comparação com Portugal. No entanto, este país dificilmente pode respirar de alívio. Com a sua estagnada economia a beneficiar da fuga de capitais dos países emergentes para o centro agora em curso, esta facilidade de acesso ao mercado parece conjuntural. Realidade esta que também explica a recente descida da taxa de juro em Portugal. Esta conjuntura é admitida pelo Governo Irlandês[2]. Com o financiamento garantido em 2014, o governo pretende adiar o eventual recurso ao famoso “programa cautelar”, que tem uma duração limitada no tempo, para quando for preciso no futuro. Paralelamente, o insucesso das negociações entre a Irlanda e a UE no acesso a este programa no passado Outono, com novas imposições alemãs no que toca à política fiscal irlandesa, continuam a mostrar as assimetrias de poder em jogo no campo europeu. A ingerência externa e a imposição de austeridade não acabaram para os irlandeses.

Há, pois, lições a tirar do caso irlandês para o nosso país, mas não são as da necessidade de sermos o bom aluno europeu. Face ao actual quadro, Portugal deve enveredar pelo caminho irlandês de renegociação da sua dívida junto dos seus credores e recusa da austeridade. As implicações serão necessariamente mais graves do que as suportadas pela Irlanda, nomeadamente no que à moeda única diz respeito. Todavia, só a desobediência soberana e democrática pode inverter o horizonte de estagnação económica, com permanente elevado desemprego, a que a actual arquitectura financeira europeia nos está a condenar.



[1] Veros textos publicados no blogue “Jugular”: http://jugular.blogs.sapo.pt/3653363.html e
http://jugular.blogs.sapo.pt/3654996.html

[2] http://www.irishtimes.com/news/politics/key-reason-behind-exiting-bailout-unaided-was-timing-says-michael-noonan-1.1595244


 
 
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