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01-09-2013        Revista Plural & Singular    [ pp. 52-53 ]

Comparativamente à população em geral, as pessoas com deficiência apresentam maior risco e incidência de vitimização de violência (Roulstone et al, 2011; UE, 2011), com especial destaque para mulheres e pessoas com dificuldades de aprendizagem, em meio familiar e/ou institucional (OPM, 2009; INR, 2010). No entanto, no contexto nacional, apesar do recente investimento em programas de prevenção da violência (CIG, 2008), regista-se uma ausência de investigação e intervenção no campo dos crimes de ódio (INR, 2010). Acresce a inexistência de dados que permitam conhecer a acumulação de factores de discriminação, condicionando uma análise interseccional da violência direccionada a pessoas com deficiência (OPM, 2009).

Os dados oficiais existentes são muito escassos, quer ao nível de relatórios oficiais quer de estudos recentes desta realidade. Trata-se, portanto, de uma realidade socialmente invisibilizada. A minha análise de um observatório de imprensa do jornal Correio da Manhã entre 2006 e 2012, não obstante a sua falta de representatividade, poderá servir de barómetro desta realidade em Portugal. Tal como me foi possível observar a maioria das vítimas são raparigas e jovens mulheres com deficiência, 60% dos casos referiam-se a mulheres com menos de 29 anos, sendo que destas 37% tinham idades inferiores a 20 anos, e possuíam uma incapacidade cognitiva ou uma dificuldade de aprendizagem. A violência sexual (violação e abuso sexual) lidera a lista de crimes cometidos contra as pessoas com deficiência contabilizando cerca de 50% do total de crimes, seguida da violência física. Não obstante a alta incidência destes tipos de crime para ambos os sexos, uma análise comparativa com base no género da vítima permite concluir que as raparigas e mulheres são as principais vítimas sobretudo dos crimes de violência sexual. Estes dados corroboram outros estudos internacionais e programas da ONU que estimam que as mulheres e raparigas com deficiência têm uma probabilidade três vezes superior à dos homens com deficiências de experienciar violência física e sexual. Tal como a análise também demonstra, cerca de 48% dos crimes prolongam-se temporalmente (de alguns meses a vários anos), especialmente nos casos de violação e abuso sexual. Tal como a literatura internacional tem igualmente evidenciado, a maioria dos abusadores são pessoas conhecidas das vítimas. Desta análise ressalta que cerca de 75% dos crimes são cometidos por pessoas conhecidas, com especial destaque para elementos da própria família (36% dos casos), funcionários das instituições frequentadas pelas pessoas com deficiência (12%), membros da comunidade (10%) e vizinhos (8%).
Os abusadores são em 90% dos casos do sexo masculino com idades muito variáveis, sendo que em 50% dos casos têm entre 30 e 60 anos. Os dados referentes a medidas de coacção e aos resultados do processo são muito reduzidos todavia alertam-nos para algumas falhas do sistema legal nacional.

A proteção jurídica das pessoas com deficiência em Portugal provém de quatro fontes essenciais. O artigo 71.º da Constituição da República Portuguesa, que define no seu número 1 que “Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados.”. Mais recentemente em resultado de processos mais amplos de modernização e europeização, e inquietações do Movimento de Pessoas com Deficiência (Fontes, 2011), foi aprovada a Lei Anti-Discriminação em Razão de Deficiência (Lei 46/2006) e ratificada a Convenção da ONU (ONU, 2006). Estes documentos têm tido todavia um impacto muito limitado na proteção das pessoas com deficiência em Portugal, uma vez que no caso da Constituição este artigo foi incapaz de eliminar uma ideologia deficientizadora ancorada ao longo de décadas e séculos que comprometeu muitas das políticas de deficiência aprovadas em Portugal nas últimas três décadas. O impacto da Lei 46/2006 tem sido também muito limitado como demonstram os relatórios anuais apresentados pelo INR que evidenciam um reduzido número de queixas apresentadas, bem como o seu decréscimo ao longo do tempo.

Uma última fonte de proteção é o Código Penal Português onde algumas penas são agravadas no caso de se tratar de uma pessoa com deficiência ou este facto poderá ser considerado pelo/a juiz/a como sinal de maior perversidade ou gravidade do crime. Esta proteção baseia-se, todavia, na ideia de vulnerabilidade da pessoa com deficiência Esta protecção é, contudo, ilusória como pude comprovar nalgumas das medidas de coacção e sentenças a que tive acesso através do observatório de imprensa. Em primeiro lugar assinalo o facto de na maioria dos casos os testemunhos das vítimas não serem suficientes para garantir a aplicação de medidas de coação mais severas ou a condenação do/a agressor/a, uma vez que são consideradas testemunhas não fiáveis. Em segundo lugar identifico uma dupla vitimização das pessoas com deficiências, quer através de avaliações discricionárias por parte dos/as magistrados/as das capacidades das vítimas para resistir aos abusos, sem terem em consideração as relações de poder existentes ou a dependência económica das vítimas face às/aos abusadores/as, quer na aplicação das medidas de coacção, que se pautam na maioria dos casos a que tive acesso por uma institucionalização da vítima em vez da prisão preventiva do/a agressor/a.

Tal como tem sido identificado em países como o Reino Unido (Roulstone et al., 2011) a lei funciona com noções estereotipadas de ódio e de vulnerabilidade, construindo os crimes de ódio de forma distintiva dos crimes cometidos contra pessoas perseguidas porque encaradas como mais vulneráveis. O mesmo acontece em Portugal, onde a deficiência continua ausente do artigo 240.º do Código Penal, onde se identificam aquilo que podem ser consideradas as principais razões de descriminação ou de formas de crime de ódio em Portugal, nomeadamente: raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo e orientação sexual. Não obstante o facto da violência na maioria destes casos e da deficiência ter a discriminação como denominador comum, o Estado aborda-os de diferente forma. Se nos casos previsto no artigo 240.º do Código Penal o Estado difunde uma mensagem colectiva de que qualquer forma de violência baseada nestes aspetos é socialmente censurável, no caso da violência sobre pessoas com deficiência o Estado socorre-se de uma ideologia normalizadora que subvaloriza as pessoas com deficiência. A representação das pessoas com deficiência como vulneráveis e fracas tem o efeito perverso de as culpabilizar pela sua própria vitimização e de contribuir para um aumento do estigma associado à deficiência.

Tendo em conta o impacto da violência sobre as pessoas com deficiência em Portugal e a ineficácia das medidas legais de proteção existentes eu sugiro uma desconstrução destas ideias pré-concebidas de ‘ódio’ e ‘vulnerabilidade’, um reconhecimento legal do crime de ódio com base na deficiência ou da deficientização como uma forma de discriminação social.

Referências:
CIG. 2008. III Plano Nacional contra a Violência Doméstica. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.
Fontes, Fernando. 2011. Social Citizenship and Collective Action: The Case of the Portuguese Disabled People’s Movement. Tese de Doutoramento, Universidade de Leeds, Reino Unido.
INR – Instituto Nacional para a Reabilitação. 2010. Relatório Anual sobre a Prática de Actos Discriminatórios em Razão da Deficiência e do Risco Agravado de Saúde - Aplicabilidade da Lei n.º 46/2006, de 28 de Agosto [2008]. Lisboa: Instituto Nacional para a Reabilitação.
OPM – Office for Public Management. 2009. Disabled People’s Experiences of Targeted Violence and Hostility. Manchester: Equality and Human Rights
Commission Research Report Series. Disponível em: http://www.equalityhumanrights.com/publications/our-research/ [consultado a 12/06/2011].
Roulstone, Alan; Thomas, Pam; Balderston, Susie. 2011. Between hate and vulnerability: unpacking the British criminal justice system’s construction of disablist hate crime. Disability & Society, 26(3), pp. 351-364.
UE. 2011. Proposta de Directiva relativamente a vítimas de criminalidade.
Disponível em: http://europa.eu/rapid/pressReleasesAction.do?reference=IP/1
1/585&format=HTML&aged=0&language=PT&guiLanguage=en [consultado
a 11/06/2011].


 
 
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