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26-02-2013        Público

Estamos habituados a pensar o Norte "desenvolvido" olhando para cima, mas talvez seja o momento de inverter o mapa-múndi e exercitar a nossa reflexão crítica imaginando um Sul "promissor" que olha para os europeus "de cima para baixo". Sentimentalmente constrangido ou levianamente divertido, o Brasil assiste ao definhar da sua ex-metrópole, vivendo tempos eufóricos. É difícil saber se o atual processo de "brasileirização" de Portugal (com o desmantelar do Estado social e dos direitos laborais) terá como contrapartida uma futura "europeização" do Brasil ou uma reinvenção da Europa a partir de um olhar sulista. Ironias à parte, é, apesar de tudo, consensual que os problemas sociais do continente sul-americano e do Brasil em particular são bem mais graves do que os da Europa. Nós, europeus, é que estávamos - segundo a leitura do poder vigente - "mal habituados". Enfim, essa é outra conversa. O ponto aqui é o modo como portugueses e brasileiros pensam e agem no campo da contestação social, no momento em que se aproxima mais uma vaga de conflitualidade no nosso país.

Em primeiro lugar, as greves em Portugal só foram intensas e mobilizadoras quando a nossa Revolução de Abril já tinha posto fim à ditadura do Estado Novo. Quando participar numa greve ou mesmo ocupar uma fábrica era quase, passe o termo, uma brincadeira de crianças. Nesse tempo, era maior o risco de ser "fura-greves" do que o de aderir à greve. No mesmo período no Brasil invejava-se a nossa revolução democrática, mas cantava-se a festa dos cravos com a sonoridade tropical do Chico. Mais tarde, as greves do operariado do ABC paulista deram lugar ao novo sindicalismo brasileiro e alastraram a outras regiões e sectores da classe trabalhadora, incluindo movimentos dos "sem-terra", conduzindo ao nascimento do PT e à queda da ditadura militar. Hoje, as greves em Portugal, mesmo as consideradas "gerais", são sempre muito parciais, de curta duração e comportam elevados riscos (e cortes salariais significativos). Enquanto aqui no Brasil, mesmo as greves setoriais são "gerais", podem durar meses, sem qualquer risco e em geral os dias de greve são pagos (sobretudo no caso dos servidores públicos).

Quanto às "manifestações" de rua, em Portugal adquirem um cunho dramático e suscitam as habituais reações negativas das mentes bem-pensantes, sempre dispostas a achincalhar tudo o que cheire a profano ou a popular. Mas, enquanto no Brasil os direitos do povo suscitam a fúria da classe média instalada, por cá esta classe "desinstalou-se" (e desfaz-se a cada dia), engrossando as fileiras da contestação. Os brandos costumes lusitanos tendem a esconder a vertente lúdica e festiva de cada "jornada de luta" (que, como se sabe, é apenas uma desculpa para mais um convívio excursionista nas ruas da capital); já do lado sul do Atlântico a diversão assume-se logo à partida no próprio nome: trata-se de "passeatas"(!). À maior gravidade das injustiças sociais no Brasil corresponde a maior intensidade do preconceito racial ou de classe, ao mesmo tempo que a violência dos media (e da classe média) não faz esmorecer o fervor classista nem o radicalismo colorido e festivo das lutas sociais. Por exemplo, São Paulo é palco da maior "manif" mundial de movimentos LGBT. E ninguém pode dizer que a cor e a festa faltem na parada gay da Av. Paulista (que se repete anualmente e que já atingiu os quatro milhões de participantes).

Para além desta, as lutas estudantis em 1968 e em 1992, a campanha das "diretas já" (anos 1980), as mobilizações pelo impeachement de Collor de Melo (92), as marchas do MST (97 e anos 2000), as lutas contra a violência e a corrupção no Rio de Janeiro, além do sindicalismo dos metalúrgicos, que revelou Lula da Silva como líder (anos 80), são somente alguns dos momentos altos dos protestos no Brasil. Em Portugal, por seu lado, o tempo das "manifs" e das concentrações apoteóticas - do 1.º de Maio de 1974 à Fonte Luminosa de 75, e do cerco de São Bento à da bombinha da Praça do Comércio (afinal, "só fumaça") - passou rápido e perdeu-se na memória coletiva durante mais de 30 anos. Voltou recentemente, empurrado pela crise internacional e europeia. As maiores e mais impactantes "manifs" dos últimos dois anos foram as da "geração à rasca" (12/3/2011) e a dos desempregados, precários, pensionistas e jovens sem futuro (Que se lLxe a Troika, de 15/9/2012), que iniciaram um novo ciclo no protesto público luso, com provável continuidade nos próximos tempos e talvez com música de fundo, menos alegre, mas bem compassada (inspirada no cante alentejano).

O sindicalismo português, em vez de aliar-se, compete com a rebeldia inorgânica. O velho operariado - da Marinha Grande no início do salazarismo ou da Lisnave e Setenave dos anos da revolução -, foi rapidamente cooptado pelo PCP e, entretanto, implodiu, sendo substituído pelos sindicatos corporativistas do sector dos serviços, mais disciplinados e previsíveis. Divididos e enfraquecidos a cada dia que passa, os sindicatos (mesmo os da CGTP), já não fazem mossa; menos ainda enquanto a direção sindical e quem a comanda banalizar greves e "manifs", tornando-as um mero ritual (cada vez mais cinzento e tristonho). Pelo contrário, no Brasil, tudo é muito mais matizado e dinâmico. Maior diversidade de correntes sindicais e maior indefinição ideológica (nos campos sindical e partidário), mas também maior poder transformador no plano político e social. O "lulismo" brasileiro tem pouco ou nada a ver com o velho "ludismo" britânico (foi mais político e menos violento), mas não foi menos importante no plano doméstico, dado o significado da mudança sociopolítica que induziu, sobretudo enquanto se abriu aos movimentos sociais. Além de derrubar uma ditadura, produziu um líder que transformou o país. Já as lideranças sindicais portuguesas não deram, até hoje, nenhum fruto desse teor. Quando o discurso sindical afirma um novo líder com base na retórica "antilíder", muito provavelmente o verdadeiro líder só nasce depois de se despir da armadura discursiva do unanimismo coletivista.


 
 
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Elísio Estanque



 
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