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03-05-2012        Visão

Acabo de participar em Istambul no Congresso Internacional da Associação dos Direitos das Mulheres no Desenvolvimento. Mais de 2500 mulheres activistas vindas dos mais diferentes países reuniram-se para discutir e desafiar os obstáculos económicos, políticos, culturais, religiosos que continuam a bloquear a plena cidadania das mulheres. Estávamos reunidos na Turquia onde as mulheres não são mais que 25% da força de
Trabalho, a violência contra as mulheres aumenta, o partido no governo mostra muito pouco entusiamo pela igualdade de direitos das mulheres e o primeiro-ministro exorta as mulheres a terem pelo menos três filhos. Aliás, o desagrado que este congresso causou às autoridades fez com que muitas mulheres (e.g. moçambicanas) vissem os seus vistos de entrada recusados.

O impacto da crise europeia foi um dos temas do congresso, analisado no âmbito mais amplo de outras crises que o mundo atravessa. São muito diferentes as trajectórias de vida das mulheres em diferentes partes do mundo mas têm algo em comum (ainda que a intensidade varie muito). Mesmo em tempos de relativo desafogo social, continuam a ser vítimas de discriminações sociais, salariais e no acesso à terra ou à propriedade; de assédios sexuais, e de violência no espaço doméstico e no trabalho; e do bloqueio no acesso à esfera púbica e à actividade política. Em tempos de crise, este sofrimento injusto não só se mantém como até se agrava. Nos países do sul global, a crise ecológica e alimentar tem um impacto específico nas mulheres africanas, asiáticas e latino-americanas que têm a seu cargo a busca da água, boa parte das tarefas agrícolas e a preparação dos alimentos. Nos países do norte global, a crise financeira veio afectar as mulheres de múltiplas maneiras, algumas delas pouco visíveis. Mesmo quando não são as primeiras a ser despedidas, as mulheres têm que se desdobrar em novas actividades pagas e não pagas para manter o orçamento familiar acima da asfixia. São limpezas, costura, explicações, cozinhar para fora, babysitting, artesanato, agricultura de varanda, etc.

Por outro lado, os custos sociais e psicológicos da crise no bem-estar das famílias recaem sobretudo nas mulheres. Exigem delas um esforço adicional numa área da economia que os economistas convencionais nunca reconheceram e sem a qual as sociedades não subsistem: a economia do cuidado. É um conjunto vasto de trabalho não pago que serve as crianças e os velhos da família, que gere a depressão ou a agressividade (ou ambas) do companheiro estressado pelo emprego ou pela falta dele, que atende às necessidades dos filhos casados e agora necessitados de algumas refeições decentes por semana ou do apoio da família (quase sempre eufemismo de mãe)  nos tempos livres dos filhos antes passados nas actividades extra-escolares, no ballet ou no ténis, etc. Mas não esqueçamos que a economia de cuidado pode circular em dois sentidos, de pais para filhos e de filhos para pais,  e que o verdadeiro colapso social ocorre quando ela já não é possível em nenhum dos sentidos. A esta economia do cuidado também chamamos sociedade providência porque em Portugal ela sempre teve de colmatar as fortes lacunas do Estado-providência que, ao contrário do que clama a direita, foi sempre fraco e sempre se apoiou na protecção social a cargo das famílias. Um dos efeitos perversos da crise é fixar as mulheres no trabalho não pago e fazê-lo com um apelo às virtudes dos papéis tradicionais da "dona de casa";. 

As mulheres, que suportam um fardo desigual quando a austeridade imposta pelo neoliberalismo desaba sobre as famílias, sabem bem que a solução é lutar por um outro modelo económico que elimine as causas do fardo: redução drástica dos orçamentos militares, reconhecimento de outras economias baseadas na reciprocidade e na dádiva, serviços públicos eficientes, tributação progressiva, direitos de cidadania eficazes, incluindo os direitos reprodutivos e sexuais, que libertem as mulheres do jugo do sexismo e do fundamentalismo religioso (católico ou muçulmano). 
 


 
 
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Boaventura de Sousa Santos



 
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