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04-08-2022        Público

Desde que, por iniciativa do Governo, se deu início ao processo de reforma do direito de trabalho, em discussão parlamentar, tem-se assistido à manifestação de diferentes posicionamentos, no espaço público, designadamente por parte dos parceiros sociais e dos partidos políticos. Estamos perante duas visões opostas do mundo laboral, o que é uma narrativa muito conveniente para os que defendem o direito do trabalho como variável de ajustamento dos mercados. Esta é a armadilha que paira sobre o debate. Armadilha, no sentido de que a regra dominante, com incidência político-jurídica, é a do neoliberalismo, normalizada entre a crise do Estado providência, dos anos 1970, e as suas manifestações mais musculadas, desde 2008, sob o signo da austeridade contra os direitos sociais. Esta lógica dos mercados tem corroído os princípios do Estado social de direito democrático, mercadorizando o próprio direito, fenómeno conhecido por “law shopping”. Prejudicada fica, assim, a defesa da democrática Agenda do Trabalho Digno da Organização Internacional do Trabalho, orientada para a justiça social, combate à precariedade e pobreza e o reconhecimento civilizacional de que o “trabalho não é uma mercadoria”. A sua tradução político-jurídica, no contexto português, exige o combate ao retrocesso civilizacional do Código do Trabalho de 2003 e da inflação legislativa desreguladora das relações laborais decorrente das orientações de e para além da troika.

Merecem especial atenção, neste artigo, as matérias da negociação coletiva por duas razões. A primeira decorre da relação existente entre democracia política e laboral, quer nas diferentes formas de interligação entre democracia representativa e participativa, através das diferentes manifestações de diálogo social e de participação de sindicatos e trabalhadores na arena democrática, quer porque a negociação coletiva é expressão constitucional da realização e da efetividade dos direitos fundamentais. Acresce que, no momento em que as democracias são afetadas pelos fenómenos do populismo e por reivindicações inorgânicas, oportunisticamente geridas, a negociação coletiva é, e tem de ser defendida, como um espaço estruturado, legítimo e de discussão democrática entre interesses divergentes. A segunda decorre do seu papel de promoção da justiça social, enquanto instrumento de reconhecimento do esforço dos trabalhadores e trabalhadoras, de promoção da qualidade de vida e das condições de trabalho e de redução das desigualdades. A par com os mecanismos de redistribuição de rendimentos e das medidas de proteção social, a negociação coletiva é parte integrante de um Estado social robusto. E deve assentar em três pilares: boa-fé negocial; diálogo social efetivo; e criação de resultados de negociação a partir de interesses divergentes.

Em segundo lugar, o atual artigo 3.º, do CT, deve ser alterado no sentido de não permitir que a negociação dos Instrumentos de Regulação Coletiva de Trabalho (IRCT’s) consagre situações menos favoráveis aos trabalhadores por relação às normas legais reguladoras do contrato de trabalho. A reposição deste princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador tornará mais robusta a negociação coletiva.

Em terceiro, as propostas de alteração legislativa não resolvem totalmente o problema criado pelo artigo 497.º, do CT, ao fragilizar e contribuir para a erosão da cobertura da negociação coletiva. Esta norma continuará a permitir, em algumas situações, que os trabalhadores não filiados em sindicatos escolham, caso exista mais do que uma convenção coletiva aplicável, aquela que pretendem que lhes seja aplicada. Esta figura suscita fortes dúvidas, no plano constitucional, enquanto possível violação do princípio da liberdade sindical, nas suas valências positiva e negativa (artigo 55.º, da Constituição), bem como do princípio da autonomia coletiva. Acresce que, numa perspetiva sociológica, esta medida é suscetível de induzir comportamentos oportunísticos tipo free rider.

Em quarto lugar, a questão da caducidade das convenções coletivas, da sobrevigência e do recurso à arbitragem necessária. São conhecidos os diagnósticos da situação de bloqueio da negociação coletiva, onde se constata que, apesar das flutuações registadas no número de IRCT’s e do efeito potenciador da taxa de cobertura dos trabalhadores abrangidos por convenções, através das portarias de extensão, a negociação coletiva permanece um instituto fortemente condicionado. A questão de fundo da caducidade resulta de um processo histórico, político e jurídico, nos termos do qual se gerou uma assimetria de poder negocial desfavorável para os sindicatos e para os trabalhadores. É, por isso, necessário criar condições para um novo equilíbrio negocial, onde a caducidade só é aceitável, na futura legislação, quando essa situação não permita descaracterizar os direitos fundamentais e indisponíveis dos trabalhadores, se tenham alargado as cláusulas de direitos dos trabalhadores que se manterão, em vigor, apesar da caducidade das CCTs, onde estejam inseridos (ex: uma cláusula que criou um regime profissional complementar de segurança social), e, ainda, se essa situação, em concreto, permita dinamizar a negociação coletiva.

A arbitragem necessária, nos termos em que envolve os parceiros sociais nos processos de resolução dos conflitos coletivos, afigura-se-nos pertinente. Por isso, embora se reconheça os esforços do legislador, no sentido de que seja acionado o processo de arbitragem antes de a convenção coletiva caducar, é facto que este mecanismo não é mobilizado com frequência, pois, conforme resulta dos dados do CRL, “nos últimos três anos (2019-2021) não foi publicada qualquer tipo de decisão arbitral […] em processo de arbitragem, (...)”. Ora, tendo em conta a análise sociojurídica do sistema de resolução dos conflitos de trabalho português, coletivos e individuais, podemos estar a assistir à promoção de mais um efeito perverso que acaba por mascarar o verdadeiro problema, acima mencionado, subjacente à caducidade das convenções.

Esperamos que a Agenda do Trabalho Digno não seja armadilhada pelo “efeito leopardo”, chamemos-lhe assim em homenagem a Visconti, no sentido de que “é preciso dar a aparência de que tudo muda, para que as coisas permaneçam iguais”.


 
 
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António Casimiro Ferreira
João Pedroso



 
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