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21-04-2022        Público

A invasão da Ucrânia tem gerado novas clivagens no debate público, em que diversas figuras proeminentes no mundo académico e jornalístico (e também o PCP), além de assumirem posições ambíguas em relação aos motivos que levaram à guerra, colocam-se ele/as próprios/as muitas vezes na posição de vítimas.

Em primeiro lugar (1) o fator mediático é o foco da crítica. Apesar de amiúde começarem por condenar de forma telegráfica e algo difusa a invasão da Ucrânia pela Rússia, passam o resto das suas intervenções a queixarem-se de um alegado pensamento único sobre este tema, de “intimidação concertada” ou “character assassination". Trata-se, em diversos casos, de opinion makers com presença assídua nos media mainstream, mas apesar disso assumem-se como os dissidentes exclusivos da doxa dominante. Repetem como citação de autoridade frases vazias de convicção (a condenar Putin) que são atiradas apenas para legitimar o argumento contrário.

Em segundo lugar (2), a pretexto da contextualização histórica, apresentam um rol de guerras e invasões (em especial no chamado Sul Global), que teriam recebido muito menor atenção e solidariedade dos meios de comunicação social, da população e do poder político face à que está a receber a Ucrânia.

Em terceiro lugar (3) sugerem que deveríamos relativizar a gravidade da invasão, uma vez que, em última instância, seriam os EUA e as forças militares a eles submetidas (NATO) os verdadeiros responsáveis, considerando até que foi montado “um cerco à Rússia”. Ou seja, sugerem que isto não é bem um problema de invasão ilegal, não provocada e bárbara, de um país (a Ucrânia) por outro (a Rússia), mas antes uma proxy war da Rússia com a NATO e o Ocidente. Consideramos que os referidos argumentos revelam um olhar parcial e enviesado do ponto de vista político e da ancoragem empírica dos argumentos, que no fundo exprime uma atitude nostálgica e “ocidentalofóbica”

Quanto ao primeiro ponto (1), é óbvio que, numa guerra, o uso da propaganda não é exclusivo de nenhum dos lados. Todavia, no caso desta guerra, se há um lado que usa e abusa da propaganda, esse lado é a Federação Russa. Vejamos três exemplos flagrantes.

Antes de a guerra ter início, as grandes potências ocidentais e as respetivas agências de intelligence (leia-se serviços secretos, os quais numa democracia são escrutinados pela maioria e pelas oposições, algo que não acontece nem na Rússia nem nos seus principais aliados), anteviram e advertiram para a iminente invasão da Ucrânia pela Rússia, ao que esta ripostava com a existência de uma “histeria ocidental”. Viu-se… Contrariando toda a evidência desde que a invasão começou, a Rússia nega que esteja em curso uma guerra, proibindo mesmo a utilização da palavra pelos cidadãos e pelos mass media russos. A propaganda russa parece inspirada na “novilíngua” do 1984 de George Orwell, numa linha de continuidade entre estalinismo e putinismo.

E o que dizer dos massacres e crimes de guerra (em Bucha, Borodianka, Irpin, Vorzel, etc), que a Rússia nega sempre? Como se não víssemos todos, todos os dias, tais crimes espelhados em vastas zonas residenciais de cidades ucranianas destruídas, e em corredores humanitários obstaculizados pelos russos, como em Mariupol. Alguém acredita numa palavra do que diz a Rússia? Talvez os tais intelectuais heterodoxos (?!...) que, aliás, não dizem uma palavra sobre isto, pois parecem mais preocupados com o alegado “pensamento único” em Portugal e no Ocidente, uma pura falácia, de que eles são o exemplo acabado ao terem tanto espaço mediático (ou mais) do que a corrente que acusam de pensar segundo a “cartilha pronta a pensar fornecida pela NATO”.

Quanto ao segundo argumento (2), que realça as várias guerras e invasões por esse mundo fora, perpetradas por potências ocidentais e/ou seus aliados locais (e que conduz à relativização da invasão da Ucrânia), estamos cientes de que, por exemplo, a invasão do Iraque foi baseada numa mentira (as armas de destruição em massa), tal como a guerra na Síria, onde os bravos combatentes curdos contra o ISIL foram abandonados por Trump às mãos dos turcos, a situação na Palestina, que se arrasta há décadas, a invasão do Iémen liderada pela Arábia Saudita com o beneplácito de Trump, etc, etc. Em suma, tal como muitíssimos outros críticos da invasão da Ucrânia, temos estado ativos no combate a todas essas outras guerras e atropelos ao direito internacional. O que mais nos choca perante este horror é a frieza e insensibilidade que se escondem por detrás dos apelos ao “pensamento crítico” ou a uma “paz-rendição” face à violência atroz dos massacres por parte da potência invasora. Um mal não é justificável por outros males.

Mas o facto de esta guerra ter a Europa como palco não é um mero detalhe. É humanamente compreensível que os mass media, os cidadãos comuns e os políticos deem maior atenção, empenho e solidariedade à Ucrânia do que aos outros países ou povos fustigados e martirizados: não porque as vidas dos cidadãos desses outros países valham menos (de todo em todo!), mas porque os ucranianos não são só nossos vizinhos. Além de partilharem a nossa cultura europeia (como de resto também a Rússia), estão a resistir à agressão de um inimigo que, além dos horrores que já praticou na Ucrânia, pretende ir mais longe e, se o deixarem, atingirá a UE e os seus próprios regimes democráticos. Isto pode ser menos claro na periferia ocidental da Europa, como é o caso de Portugal (onde a influência soviética no período do PREC deixou marcas), mas é muito claro nos países da velha zona tampão dos tempos da URSS (criada a partir do pacto germano-soviético assinado por Molotov-Ribentrop), que têm mostrado enorme solidariedade ativa com a Ucrânia. Conhecem bem o calibre hegemonicamente bárbaro do gigante russo desde os tempos do império czarista, passando pela URSS, e, por isso quiseram e aderiram todos à NATO, para obter proteção.

O terceiro argumento (3), de que a invasão da Ucrânia pela Rússia não seria bem uma guerra invasora do primeiro país pelo segundo, seria antes uma proxy war da Rússia com os EUA e a NATO, mediada pela Ucrânia, visa diluir as responsabilidades russas e menorizar o papel da Ucrânia e do seu povo. Este argumento revela uma nostalgia difusa dos tempos da Guerra Fria e da URSS, da divisão do mundo em zonas de influência, em que cada país em cada zona de influência teria uma soberania limitada em termos de política externa e de alianças geopolíticas face à potência dominante nessa zona. As Repúblicas Socialistas Soviéticas (como os Bálticos ou a Ucrânia ou a Moldávia), por maioria de razão, e os países do pacto de Varsóvia, por extensão, seriam “o quintal dos russos”. A América Latina e, de certo modo, a Europa Ocidental seriam “o quintal dos norte-americanos”. Mas esse mundo acabou com a queda do Muro de Berlim (1989) e o colapso da URSS, apesar de Putin parecer querer restaurá-lo, com a contemporização dos referidos intelectuais heterodoxos e do PCP.

Além de desresponsabilizador da Rússia e de revelar nostalgia pela Guerra Fria, este argumento é desfasado da realidade e evidencia uma ausência de exame crítico do legado do império soviético. Alguém duvida que os países da velha zona tampão que aderiram à UE e à NATO o fizeram de livre vontade? Basta olhar para as posições dos partidos nos respetivos parlamentos sobre o tema para se perceber que há, em geral, um apoio esmagador desses povos a tais adesões. E basta lembrar o legado de opressão nos países bálticos durante a era soviética para o perceber: execuções e prisões em massa, expropriações, deportações em massa para o gulag, etc. E as minorias russófilas nestes países não são mais do que os descendentes dos colonos que Estaline lá plantou para dominar esses países, onde a língua oficial era – por imposição do dito – o russo.


 
 
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Elísio Estanque



 
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