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15-04-2021        Jornal de Leiria

No mês em que se assinalam os 47 anos do 25 de abril, a democracia apresenta sinais de uma crise de meia idade, da qual pode sair fragilizada ou reforçada.
Importa enfrentar perguntas difíceis e avaliar erros do passado. Olhar para o caminho feito não é, como disse o primeiro ministro no inicio de março, fazer uma revisão autoflageladora, mas superar o medo de amadurecer. A negação impede o diagnóstico.
Falhando no reconhecimento dos desvios à democracia, estamos a condenar-nos a repetir os erros.
Quando Costa disse que os portugueses não se reveem no discurso de Mamadou Ba, não falou por mim. Quando afirmou que se está “a abrir de forma artificial uma fratura perigosa para a nossa identidade”, falhou o diagnóstico, porque recusa ler a história com as variáveis reveladas pelas lutas sociais e cientificamente reconhecidas.

O feminismo traz visibilidade à violência de género, não inventa o patriarcado. Do mesmo modo, o antirracismo não inventa o racismo e o colonialismo, revela as suas origens e continuidades. Se ignorarmos os processos de silenciamento e toda a violência que os envolveu, permaneceremos no túnel da visão parcial da história e aceitaremos a ficção do mérito individual.
Quando dizemos que há racismo ou sexismo na sociedade portuguesa, estamos a discutir assuntos maiores que os indivíduos. A opressão estrutural, historicamente constituída, entranha-se na vida, reproduz-se e reforça-se na organização do território, na esfera doméstica, nas oportunidades, na linguagem, nas expectativas, na seleção de quem opina. Encolhe-nos como coletivo, subtrai em vez de somar, restringe a nossa imaginação política.

Uma democracia não pode assobiar para o lado quando, de forma coerente e sustentada, lhe apontam limites. Não pode dispensar-se da congruência, argumentar que foi longe que chegue ou que é velha para aprender, sob pena de ficar tão frágil que sucumbe à narrativa simplista e criminosa dos autoproclamados heróis antissistema.
A fratura de que falou António Costa sempre existiu, porque o contrato social nunca foi cumprido. Os direitos à habitação, à saúde, ao trabalho e à educação, inscritos na constituição de 1976, deixaram grupos inteiros de fora. Não foi azar, mas resultado da distribuição desigual de poder. Populações negras, comunidades ciganas, imigrantes viram sempre negados direitos fundamentais.
Como essas vozes foram abafadas, a fratura não esteve exposta e a ilusão da universalidade passou por verdade.

A caminho dos 50 anos, a democracia tem que perceber que a vida é complexa. Larguemos a culpa com as certezas absolutas, saibamos assumir erros, posicionar-nos de forma informada, sem medo de reconhecer que podemos ser simultaneamente opressores e oprimidos e que exigir mais não é condenar a democracia, mas defendê-la. É somar possibilidades de imaginar, não é subtrair.
A neutralidade, de que alguns se orgulham, é uma falácia. Se assistimos a uma situação de bullying sem intervir, somos cúmplices do opressor. Quem se imagina parado, desliza na corrente da opressão hegemónica.
25 de abril sempre, porque a democracia é necessariamente uma construção inacabada.


 
 
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Sara Araújo



 
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